Palavras e coisas
Distinguir palavras e coisas é, ou deve ser, algo bastante banal. A palavra corresponde a um símbolo, enquanto a coisa referida consiste no referente da palavra. Apesar de tamanha banalidade, a quantidade imensa de tempo, palavreado e confusão gasta em decorrência da falta de clareza sobre tal distinção impressiona. Vejamos:
Problemas tipo ovo-galinha
Saber quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha, costuma ser usado para ilustrar suposta insolubilidade de determinada classe de problemas.
A solução do dilema, no entanto, torna-se extremamente simples quando se distingue claramente entre palavras e coisas, uma vez que toda a confusão nele embutido decorre de não se perceber com nitidez tal diferença.
Quando somos perguntados “quem veio primeiro”, tendemos a nos concentrar nos referentes, ou seja, na galinha e no ovo. Tal ação é natural, fundamentada nas conversas cotidianas, em geral, focadas quase sempre em seus referentes, a menos que haja referência explícita ao enfoque sobre as palavras. Uma breve atenção, no entanto, sobre qual deve ser o foco, ao se analisar o problema, revela que devamos, nesse caso, dar atenção especial às palavras.
Ocorre que as palavras “ovo” e “galinha”, embora conhecidas por todos, não embutem clareza absoluta sobre o que é um ovo. Usualmente, usamos “ovo de galinha” em 2 sentidos distintos: 1) ovo capaz de gerar uma galinha; 2) ovo posto por uma galinha. Quase sempre essas duas definições funcionam de modo equivalente, como expressões sinônimas. Ocorre que, eventualmente, um pássaro de determinada espécie pode botar um ovo que acaba por gerar uma outra espécie. Nesse caso, 1) e 2) acima passam a ter significados diferentes caso se considere o ovo pertencente à espécie que gerou o ovo, ou à que ele está gerando.
Desse modo, a solução do dilema consiste simplesmente em definir a expressão “ovo de galinha” de modo mais claro e explícito. Se consideramos, como em 1), “ovo de galinha” o ovo que é capaz de gerar uma galinha, concluímos que o ovo deve, necessariamente ter vindo primeiro. Caso, no entanto, consideremos, como em 2) “ovo de galinha” o ovo posto por uma galinha, concluímos que a galinha tem que ter vindo primeiro. Confira.
Vírus
Solução análoga se aplica à enorme classe de problemas decorrentes de precariedade das definições e desconhecimento, ou desleixo, sobre a importância das definições.
Os biólogos discutem ferrenhamente, há décadas, se os vírus são seres vivos, ou não. A diatribe infindável tem origem em confusão análoga à da primazia do ovo ou da galinha, e solução equivalente, tão simples e banal quanto essa.
A confusão se origina no fato de que os vírus se reproduzem e evoluem como todos os seres vivos, embora, ao contrário dos seres vivos tradicionais, sejam criaturas inertes que não desenvolvem nenhuma atividade metabólica, como os cristais. Ou seja, embora os vírus não façam absolutamente nada, incapazes de proceder qualquer ação, acabam reproduzidos pelas criaturas infectadas por eles, desenvolvendo, ao longo do tempo, processo evolutivo similar ao dos seres vivos.
Assim como no caso anterior, a solução do dilema emerge de imediato da compreensão da origem da confusão.
Se definimos “ser vivo” como “ser que se reproduz”, concluímos que, sob tal definição, os vírus estão vivos. Caso prefiramos definir “ser vivo” como “ser que executa metabolismo” tais criaturas não podem ser consideradas vivas.
Assim, como no caso anterior, a detecção da confusão entre palavras e coisas e a atenção sobre a definição precisa das palavras esvazia a infindável discussão e soluciona o dilema de maneira extremamente simples.
Um número espantosamente grande de problemas importantes em diversas áreas pode ser solucionado compreendendo-se a origem de tais confusões.
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