Por Gustavo Gollo
A palavra “ciência” tem sido utilizada na vida comum, e por cientistas, de maneiras bastante equívocas. Por essa razão, costuma-se assumir como ponto pacífico a existência de uma única Ciência dividida em múltiplas áreas, cada uma delas, de modo que a física, a química e a biologia, por exemplo, são vistas como diferentes áreas de uma mesma manifestação geral: A Ciência. Sou contrário a essa ideia, não se trata de uma mera diferenciação de escopos. De fato, a designação comum abriga um conjunto de atividades genuinamente diversas, tão diferentes umas das outras que merecem que suas distinções sejam evidenciadas. Também creio que, não constituindo meramente áreas, mas modos de construção e organização do conhecimento, as diferentes ciências estão em vias de se sobrepor, quando comporão enfoques distintos sobre os mesmos temas, embora mantendo-se virtualmente alheias umas às outras, da maneira descrita por Thomas Kuhn como resultado típico da diferenciação de paradigmas.
Desse modo, 5 empreendimentos muito distintos compõem hoje o grande saco de gatos que engloba o que nos vem à mente quando ouvimos a palavra “ciência”.
1. Ciências formais
A matemática e a lógica costumam ser pouco lembradas pelos epistemólogos – como são chamados os que tomam a ciência como objeto de estudo –, que mais frequentemente centram sua atenção nas ciências empíricas, deixando de lado as formais, essas duas.
O que distingue as ciências formais das empíricas é que elas tratam de relações entre símbolos, não de fatos empíricos, de modo que os matemáticos e lógicos não se valem nem de experiências nem de observações para provar suas demonstrações. Apesar disso, ou, mais propriamente, por isso mesmo, são eles os únicos a, tecnicamente, provar suas conclusões.
O distanciamento da matemática e da lógica relativo a questões empíricas concede a essas ciências um perfil bastante distanciado das outras, parecendo já aceitável para a maioria considerá-las entidades autônomas diferenciadas da ciência, de um modo análogo ao que acontece com a filosofia, consensualmente aceita como atividade independente e distinta da ciência.
2. Ciências popperianas, ou proféticas
Uma advertência necessária: a heresia atroz encravada na palavra “profética”, usada acima, causa franco desconforto entre cientistas e se encontra em desuso. Sua aplicabilidade ao caso, no entanto é inquestionável. Já no século XVII os trabalhos de Newton permitiam inferir previsões bastante precisas sobre o futuro de sistemas físicos, capacidade ampliada a extremos com os desenvolvimentos obtidos por Laplace, no século seguinte. Assim, há mais de 3 séculos os físicos dominam, com precisão surpreendente, a arte de prever o futuro, ou profetizar.
De acordo com Karl Popper, o que distingue as teorias científicas de outros tipos de teorias é seu caráter testável. A física, e uns poucos desenvolvimentos tópicos em outras áreas, é estruturada da maneira descrita pelo método hipotético-dedutivo e consiste basicamente na formulação de hipóteses a serem testadas empiricamente.
As grandes teorias científicas podem ser encaradas como livres concepções do espírito humano, análogas às criações musicais, ficções e manifestações artísticas em geral. Embora o grande cientista se comporte como um Deus imbuído da tarefa de criar mundos, ao contrário de Deuses, compositores, ou artistas, os cientistas devem testar suas obras. Ou seja, tendo engendrado uma teoria – como a mecânica de Newton, ou a relatividade de Einstein – o cientista deve anunciá-la ao mundo para que profecias dela deduzidas sejam submetidas a testes.
Assim, ao contrário de profecias vãs, proferidas por profetas ordinários – desses que afirmam consultar os astros, ou crendices análogas –, profecias científicas devem ser refutáveis e lançadas a prova, distinguindo-as, assim, de outras.
Desse modo, foi uma profecia decorrente da teoria de Newton que resultou na inusitada descoberta de Netuno, astro até então desconhecido, cuja localização precisa foi prevista com base em considerações teóricas. Quero dizer, foi uma conclusão teórica realizada através de cálculos no papel, profetizada por um cientista teórico, sem o auxílio de observações, que sugeriu que os astrônomos direcionassem seus telescópios para o ponto exato onde encontraram o planeta profetizado. Insisto, grandes teorias precedem as observações que as sustentam. Como visto aqui no blog em: https://gustavogollo.wixsite.com/gustavo-gollo/post/ci%C3%AAncia-uma-ilustra%C3%A7%C3%A3o
Outra profecia notável foi extraída da teoria da relatividade em 1919, levando uma equipe de astrônomos a se deslocar até Sobral, no Ceará, para, durante um eclipse, constatar a espantosa contração do espaço, manifestada através do deslocamento da posição das estrelas observadas nas proximidades do Sol durante o eclipse.
Atente!: Einstein profetizou a ocorrência de fenômenos absurdamente inusitados – como a contração do espaço e a dilatação do tempo, entre inúmeros outros augúrios igualmente notáveis –, baseado em sonhos e delírios estéticos, não tentando se equilibrar sobre experimentos, ou observações de qualquer tipo, que o intimidassem e tolhessem. Einstein deu completa vazão a êxtases estéticos, concebendo o mais belo mundo que sua mente conseguiu engendrar, como se compusesse, livremente, uma sinfonia. Sua obra maior, a teoria da relatividade, consistiu em uma livre criação teórica, posteriormente transformada em abundante fonte de inspirações proféticas que vêm sendo sucessivamente confirmadas a medida em que tecnologias suficientemente precisas vão sendo desenvolvidas. Como visto aqui no blog em: https://gustavogollo.wixsite.com/gustavo-gollo/post/teoria-por-gustavo-gollo
Fora do escopo tradicional da física, poucas teorias lograram alcançar o status de profecias, merecendo destaque a teoria da evolução especialmente sob a linhagem Darwin – von Neumann – Dawkins que acabou por desembocar no conceito de replicador enquanto entidade passível de gerar réplicas de si.
Minha versão desse desenvolvimento se encontra aqui: https://jornalggn.com.br/ciencia/teoria-da-evolucao/
Pode-se considerar a teoria proposta na referência acima, como um transbordamento da física, consistindo no deslocamento do estilo profético de teorização, típico da física, para a biologia. Convém notar, além desse, a ocorrência do transbordamento da teoria dos replicadores para as ciências humanas em geral, destacadamente para a psicologia e a sociologia, desenvolvimento, aliás, previsto por Darwin já em Sobre a origem das espécies.
3. Ciências normais, ou kuhnianas
Em seu best-seller, “A estrutura das revoluções científicas”, um dos textos mais citados pelos cientistas, Thomas Khun defendeu a existência daquilo que ele considerou o procedimento mais comum no decorrer da atividade científica, uma etapa a que ele denominou “ciência normal”, em contraposição ao estágio científico denominado “ciência revolucionária” cuja dinâmica se assemelha à das ciências proféticas mencionadas acima.
Penso que aquilo que Khun denomina “ciências normais” corresponda a um enorme saco de gatos, e descreva com precisão a atividade de biólogos, geólogos, astrônomos, paleontólogos e outros cientistas que empenham seu tempo em observações e experiências que os levam a exaustivas descrições.
Trata-se de uma atividade conservadora que não se coaduna com grandes voos teóricos como os pressupostos nas manifestações proféticas expostas acima. Cientistas normais tendem a ser fortemente avessos a mudanças, aferrando-se às teorias que seus mestres lhes ensinaram outrora, que acolhem como dogmas que impõem, de igual maneira, a seus próprios pupilos. Avessos às teorizações, aos raciocínios e elucubrações mentais típicas dos teóricos, cientistas normais aferram-se fortemente ao hábito, embasando na tradição todo o seu conhecimento. Trata-se do trabalho de formiguinha que consiste no dia a dia da quase totalidade dos profissionais da ciência, cujo resultado constitui o estofo da infinidade de publicações que inundam as revistas científicas.
A atividade foi, a meu ver, descrita com maestria por Khun, que a considera uma fase inerente e necessária ao desenvolvimento científico.
Creio que as disciplinas abarcadas nesse grupo difiram fundamentalmente quanto à área enfocada por cada uma, ou escopo,não por seus métodos.
4. Ciências aplicadas, ou tecnológicas
Em 1934, Karl Popper causou surpresa ao defender a indemonstrabilidade das ciências empíricas. Retomando a crítica elaborada por David Hume, contrariamente a toda a expectativa da época, Popper assegurou que boas teorias científicas empíricas não podiam ser provadas.
Por essa época, a química já estava bem estabelecida, baseada no conceito de átomo, consolidado pouco tempo antes.
Mais do que isso, a química já estava sendo implementada a pleno vapor, permitindo a fabricação de inúmeras substâncias novas, portadoras de propriedades surpreendentes e diversas.
Nesse contexto, a alegação de um filósofo de que teorias científicas não podiam ser provadas, era recebida com absoluto desdém pelos químicos, capazes de exibir, em seus laboratórios, uma vasta multiplicidade de produtos elaborados por eles, fato que, a seus olhos, constituía cabal demonstração científica.
Ocorre que a química corresponde muito mais a uma tecnologia que a uma ciência. Químicos se empenham em produzir substâncias. Os maiores frutos de seu trabalho surgem, assim, na forma de substâncias, produtos de seu conhecimento. A preocupação, entre os químicos, de conhecer o mundo, de desvendar seu funcionamento, é bastante marginal, secundária. Tal preocupação seria, provavelmente, mais própria dos físicos moleculares. Os esforços dos químicos, de fato, se dirigem fundamentalmente à confecção de produtos, o que os torna assemelhados a engenheiros, e justifica a classificação da química como um ramo tecnológico, mais que como um conhecimento científico.
Cientistas almejam compreender o mundo, tecnologistas buscam dominá-lo. O resultado fundamental do trabalho de um químico é uma substância patenteável, uma tecnologia. Considerando-se a distinção entre ciência e tecnologia, uma parte quase irrisória da química se candidata ao status de ciência.
5. Humanidades, as ciências humanas
Postulo que o mundo seja aberto, consideração que sugere fortemente que construamos teorias tão magistrais e belas quanto nos seja possível, fazendo supor que o universo tradicionalmente englobado pelas ciências humanas constitua campo ideal para as teorizações; talvez o seja. Suspeito, no entanto, existirem marcadas diferenças entre os gostos usuais dos que se dedicam às ciências humanas tradicionais e os dos profetas científicos. Creio que tais diferenças manifestem-se de forma análoga àquelas que se apresentam entre os ouvintes de variados gêneros musicais, cuja determinação decorre fundamentalmente do hábito. Ouvintes fiéis de rock, samba, ou música clássica que se dediquem à audição exclusiva de apenas um gênero musical cultivam um único gosto e tendem a se manter refratários às outras manifestações musicais, que não lhes sensibilizam. Do mesmo modo, cientistas humanos e profetas científicos tendem fortemente a manifestar gostos muito diversos, talvez apenas em decorrência do hábito. Cientistas humanos tendem a valorizar o que pode ser descrito como visões poéticas, certo lirismo típico das humanidades. Profetas científicos, em contraposição, parecem mais afeitos a um ribombar de formato romântico, tonitruante.
A diferença mais acentuada entre esse tipo de teorização e o profético, caracterizado em 2, acima, consiste na não exigência da necessidade de extração de predições refutáveis das teorias que constituem as humanidades.
Já se encontra em curso o transbordamento das ciências proféticas para campos tradicionalmente monopolizados pelas humanidades. É provável que, no futuro, as duas práticas coexistam por longo tempo sem que ocorra intercâmbio significativo entre os diferentes paradigmas.
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Creio que os 5 modos de conhecimento considerados acima, distinguem-se nitidamente uns dos outros, muito mais em decorrência do uso de metodologias próprias, que pela diferenciação entre suas áreas, ou escopo.
Assim, vejo a química entre as tecnologias, a biologia entre as ciências normais, a matemática entre as ciências formais, e a sociologia entre as humanidades. Não sei que rótulo seria o mais apropriado à física e outros modos de conhecimento estruturados sobre teorias. Minha preferência pessoal ficaria com “ciências proféticas”, proposta pouco palatável para a maioria, tenho certeza. “Ciências popperianas” seria adequado, assim como “ciências testáveis”. Teria forte apelo a designação “ciências revolucionárias” adequada à física e demais ciências estruturadas sobre teorias passíveis de refutação e substituição teórica, em bloco, e correspondendo à nomenclatura kuhniana. Popper acusava a expressão de pleonástica.
Quaisquer que sejam os nomes utilizados para distinguir esses modos de conhecimento, serão úteis para enfatizar a distinção entre práticas tão diferenciadas.
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