top of page

Maria Bonita

uma história de amor

Maria Bonita, uma história de amor

Prólogo

Creio que tanto Lampião quanto Maria Bonita foram pessoas respeitáveis, e foi assim que os tentei retratar.

Acredito também que, se não são poucos os que não os têm em conta de pessoas respeitáveis, pouquíssimos

seriam os que sustentariam tal juízo na presença de ambos.

Cena1, casa de Maria: Jovem Maria, seu pai e sua mãe

Maria entra em casa: Suspiro.

Mãe: Oxe menina, com quem você estava?

Maria: Ah, que dia mais lindo hoje, que céu tão azul!

Mãe: E nem responde o que pergunto...

Maria: E o que foi que você perguntou, mainha, que eu nem ouvi?

 

Mãe: Danou-se... eu perguntei com quem é que você esteve agora há pouco.

 

Maria: Tinha ido levar o sapato para o conserto e fiquei conversando um minutinho com Zé Neném, que já não via tinha tempo, nem lembrava que ele era tão bonito.

 

Mãe: É bonito o moço, é?

 

Maria: E além de bonito é corajoso; enquanto conversávamos o irmão dele chegou fazendo a maior grosseria. Naquele momento Zé Neném demonstrou tanta coragem. Não foi só por ter enfrentado o irmão, mas pelo modo como fez aquilo: falou grosso, decidido: confrontou o irmão com tanta galhardia que o outro moço até se assustou. Cheguei a ficar comovida com tamanha atitude.

 

Mãe: Sei... mas você não tinha saído para levar esse sapato logo depois do almoço? O que é que ficou fazendo todo esse tempo?

 

Maria: Foi, saí depois do almoço, entreguei o sapato, conversei por um minuto e voltei.

 

Mãe: E só chegou agora?

 

Maria: Foi só o tempo de ir até lá e voltar.

 

Mãe: Mas já está quase anoitecendo menina, que ficou fazendo até agora?

 

Maria: Oxe, anoitecendo... se acabamos de almoçar... só dei um pulinho ali rápido, um minuto de conversa... Mas... estou vendo que o sol já vai se pôr... como pode ser isso... que tarde estranha que passou tão rapidamente... uma breve caminhada, uma conversinha rápida, e passa a tarde inteira, e que tarde mais feliz, ainda que tão curta.

 

Mãe: É, parece que as coisas estão mudando, mas já estava mesmo chegando a hora.

 

Maria: Estão sim, mainha, hoje eu senti uma coisa tão estranha enquanto conversava com Zé Neném, uma coisa boa sabe? Uma coisa que eu não sei explicar como é e que não me deixou respirar direito, uma coisa assim forte e que passa pelo corpo todo, que parece que aflige, mas que é tão boa. Eita coisa boa e tão diferente que eu nunca tinha sentido.

 

Mãe: E você ouviu isso, Felipe?

 

Pai: Ouvi não, o que foi?

 

Mãe: Conte para seu pai Maria, como é essa coisa que você sentiu.

 

Maria: Foi como eu falei, uma coisa diferente e que eu não sei explicar, uma coisa que apressa o coração, que deixa ele forte, mas que também impede que se respire direito, mas mesmo assim era bom. Estou me sentindo tão feliz.

 

Pai: Oxe!

 

Mãe: E com quem é que você estava quando sentiu isso?

 

Maria: Estava conversando com Zé Neném...

 

Pai: Mande chamar esse cabra aqui que eu quero logo ter uma conversa com ele!

 

Mãe: Calma Felipe que a menina só conversou uma vez com o moço.

 

Pai: Pois eu ainda não tinha reparado que Maria já estava tão crescida, mas eu sei muito bem como são essas coisas. E você não vai poder mais sair sozinha por aí para encontrar esse cabra.

 

Maria: Vou não? Por que não? Mas eu vou querer sentir aquilo de novo, já estava até planejando voltar lá para levar a sandália para dar uns apertos.

 

Pai: Pois não vai dar aperto nenhum! E só vai poder se encontrar novamente com esse cabra depois que ele vier aqui ter uma conversa comigo!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cena 2, Maria e Zé Neném

 

Maria: Tome tento homem, e não se dirija a mim nesses termos que eu já te falei dezenas de vezes que isso me desagrada muitíssimo.

 

Zé Neném: Mas Maria, o que é que eu fiz dessa vez? ...

 

Maria{interrompendo}: Aah... quantas vezes eu tenho que repetir Zé o quanto isso me desagrada; o quanto eu desprezo esse modo indigno de se desculpar por todas as coisas, de se escusar pelo que fez e pelo que deixou de fazer, de negar a própria culpa antes que qualquer acusação tenha sido feita...

 

Zé Neném: Mas Maria, se eu não fiz nada...

 

Maria{interrompendo}: Chega Zé, pare com esses resmungos que eu não tolero mais isso!

Será que não entende que é exatamente disso que eu estou falando? Não percebe que eu reclamando exatamente desse seu modo torpe de se desculpar sempre?, de se justificar continuamente dessa maneira passiva, de se colocar sempre na defensiva?, tenha compostura homem, aja como o Zé que eu conheci e por quem eu me apaixonei, e não desse modo abjeto e indigno semelhante ao de um cachorro de rua se esgueirando pelos cantos com o intuito de se livrar dos chutes que certamente virão, em decorrência da própria postura desprezível.

 

Zé Neném: Maria, você também exagera mulher: se eu me calo você insiste e berra para que eu responda, mas se eu respondo você se enfurece e grita como se estivesse possessa, e se eu deixo até me agride.

 

Maria: mas Zé, você não percebe o quanto isso tudo me incomoda?, o quanto tudo isso me tira do sério, me desnorteia? Você não pode avaliar o quanto eu desprezo... o quanto eu sempre desprezei essa postura servil e indigna em todas as pessoas. Mas se em todas elas isso apenas as torna desprezíveis, em você , muito mais que isso, o torna ainda odioso, e me faz sentir grande repulsa por me ver compelida a compartilhar o mesmo teto e até a mesma cama com criatura tão sórdida. Comporte-se como homem que é, Zé, que eu me casei foi com um homem e não com cachorro de rua sempre a se esgueirar, a se desculpar até pela própria existência.

Zé Neném: Mas isso não Maria, que homem eu sou e muito, e não ouse duvidar disso que se o fizer eu te dou uns tapas para te mostrar o quanto sou homem e até quem é que manda aqui!

 

Maria: Ora, mas é muito atrevimento me ameaçar depois de se mostrar tão reles; parece agora querer superar a atitude vil revelando outra ainda mais execrável. Pois ouse erguer a mão contra mim e vai descobrir com quem foi que você se casou. E não pense que tenho medo de você só porque parece que é homem, porque eu não teria medo nem que homem você fosse...

 

Zé Neném {interrompendo}: Cale-se mulher e respeite o seu marido, e nunca duvide de que eu seja macho {bofetada}...

 

Maria {aos gritos}: Aah... tire as mãos de mim seu cachorro, seu peste imundo, seu verme... Aah {agressões}

 

Zé Neném {interrompendo}: Cale a boca mulher e não seja petulante que eu vou te mostrar quem é que manda aqui {agressões, gritos}

 

{confusão}

 

Maria {em meio a choro e gritos}: Me solta seu imundo, seu verme...você me paga Zé, seu desgraçado; nunca mais vai me ter, vou deixar você se afundar em sua própria indignidade, em sua própria baixeza, e nunca mais ponha as mãos em mim, que seja até para carinho, e muito menos para agressão ou eu te corto a mão fora. Vou embora que você não merece mulher como eu, vou e não volto, não sou mais sua mulher {batida de porta}

 

 

 

 

 

Cena 3, Maria, Deinha

 

Deinha: Maria, essa eu mesmo vi, não foi ninguém que me contou; vinha passando bem perto

quando começou a confusão; presenciei tudo mesmo, e vim correndo te contar; aconteceu ainda

agora , só o tempo de vir correndo até aqui, achei emocionante, mas agora estou com receio de

eventuais desdobramentos; não sei se vai haver algum não, mas pode vir a acontecer tragédia

grande.

 

Maria: Oxe Deinha que você está esbaforida mesmo, mas não tem cara de quem está esperando

tragédia, não. Parece mais criança que acaba de ganhar presente de aniversário. Que cara tão

feliz é essa? E o que foi que aconteceu para te trazer aqui tão rápido e com tamanha alegria?

 

Deinha: Maria, você nem imagina, mas vou te contar tudo como eu mesma vi bem de perto! Estava no armarinho de Jorge quando avistei uns moços de fora vindo da direção da praça, e tratei de pagar logo uns botões que já havia escolhido. Quando os moços passaram, com o facão na cinta, gostei bem do jeito de um deles; ia com um andar abusado, jogando os braços de uma maneira descarada, como se fosse o dono do mundo; fosse outra teria se escondido em um canto e esperado eles se afastarem bastante, mas como era eu, saí logo atrás deles para descobrir que moços diferentes eram aqueles. Sabe que enquanto eu caminhava imitei de leve, e por um instante, esse de andar petulante que fazia assim... e simpatizei logo com o moço: coisa gostosa mesmo poder andar assim na rua, queria poder fazer isso sempre!

 

Maria: mas Deinha, e isso é jeito de gente? E que moços são esses que andam desse modo pela rua? Iam afrontar quem? E o que foi que aconteceu? Caminhando dessa maneira só pode resultar em bagunça mesmo, com quem foi? E por que essa felicidade toda com uns arruaceiros de fora?

 

Deinha: Então, pois eu vinha logo atrás dos moços, que eram três, o do meio caminhando dessa maneira petulante; pensando bem, os outros, ao lado, também andavam de modo insolente, mas comparados com o do meio nem se notava. Então os moços ocupavam toda a calçada da direita e já estavam chegando na rua de Cesinha quando, de lá mesmo, surge o coronel Alves rodeado de capangas. Vinha com aquele cabra malvado, Zé do chicote, e mais três outros logo atrás, e os cinco dobram a rua e se deparam com aqueles três petulantes ocupando toda a calçada e se encaminhando em direção a eles!

 

Maria: Vixi, Deinha, que isso pode dar em morte mesmo, mas o que foi que o coronel fez com os moços, e por que é que isso te deixou tão feliz assim?

 

Deinha: Então Maria, esse encontro foi emocionante mesmo! O coronel dobra a esquina e dá de cara com os três petulantes que não dão a menor confiança para o coronel e continuam a caminhar em direção a ele de uma maneira ainda mais atrevida, e eu vindo logo atrás, há uns cinco passos dos moços.

 

Maria: Vixi Deinha, afrontando descaradamente o coronel? E o homem ao lado era mesmo Zé do Chicote? Não era outro, não?

 

Deinha: E eu não conheço aquele cabra ruim, Maria? E eu lá iria confundir aquela cara feia e malvada alguma vez na vida? Pois bem, na hora eu mesma me amedrontei, por que já tinha simpatizado com os moços, e achei que o coronel ia fazer das dele, como faz sempre com todo o povo daqui, mas vou te dizer que com os moços de fora ficou foi bem quieto e encolhido; mas não foi tudo de uma vez não, aconteceu foi assim: quando o coronel dá de cara com os moços percebe a petulância e reduz o passo; Zé do chicote se adianta um pouco e os outros cabras que estão logo atrás do coronel também os rodeiam, deixando o coronel meio encoberto. Já nesse momento eu vi fraqueza no rosto do Coronel, percebi que estava assustado. Mas então, ao contrário do que sempre acontece, foi o coronel que estacou na calçada, e foi o seu grupo que foi se encolhendo à medida que os moços se aproximavam.

 

Maria: Mas você está dizendo que o coronel e mais quatro homens ficaram com medo dos três?

 

Deinha: Pois eu vinha logo atrás, colada nos moços, e no momento em que o coronel surgiu da esquina até eu tive medo; houve aquela troca de olhares sem palavras que informa tudo repentinamente, e eu vi a arrogância do coronel murchar por completo e se transformar em medo, vi quando os cabras se encolheram e tentaram se esconder uns atrás dos outros, enquanto os moços petulantes os mediam por inteiro, dos pés à cabeça; cada um deles, e seguidamente! E todos eles tentando se enfiar uns atrás dos outros; querendo deixar de existir.

 

Maria: Mas, foi assim mesmo? Como o coronel sempre faz com todos na rua?

 

Deinha: Foi muito pior Maria, porque todos por aqui já conhecem o coronel, e sempre trocam de calçada quando cruzam com ele, ou se esgueiram para a sarjeta se não o percebem a tempo de evitar. Mas o coronel, que deveria mostrar aquela empáfia costumeira e enxotar os moços da calçada para longe de seu caminho, foi quem acabou entocado ali na rua mesmo, às vistas de todos, e os moços nem deram a eles a chance de se esgueirar para fora da calçada, ficaram como que espremidos e encurralados na parede sendo medidos pelos moços, até que eles liberassem a passagem para fora afugentando o coronel já com o rabo entre as pernas para o meio da rua.

 

Maria: mas... não estou entendendo Deinha, como é que isso pode acontecer?

 

Deinha: Mas Maria, você não vê como todos os homens da cidade evitam cruzar na calçada com o coronel? e não sabe como são essas coisas de homem, de agir como se fosse galo e botar os outros para correr? pois os moços fizeram com o coronel, exatamente, o que ele sempre fez com todos por aqui, e só agora eu fui entender de verdade porque é que todos evitam cruzar com ele, pois foi a primeira vez que presenciei o que acontece quando alguém não se acovarda e se rebela contra a intimidação. Eu sempre ficava pensando o que o coronel faria se alguém daqui ousasse permanecer em seu caminho; imaginava que Zé do chicote ou algum outro jagunço abriria caminho no relho, enxotando a pancadas o audacioso que enfrentasse a arrogância do coronel, mas o que eu descobri foi que seria muito pior que isso, que pior que bater e enxotar é prender o petulante numa arapuca e não deixar que ele escape enquanto ele próprio não se sinta completamente desmoralizado e à mercê dos que o intimidam, cessando de esboçar qualquer reação, qualquer sentimento contra aqueles que o oprimem de forma tão drástica, ainda que tal abuso permaneça mais na ameaça que em sua efetivação.

 

Maria: Mas é isso mesmo que eu não consigo entender, Deinha, você comparou o acontecido com o que se passa entre os galos, mas no caso desses animais as rusgas sempre se efetivam e não param só nas ameaças; depois que um dos galos é vencido em um confronto passa a ter medo do outro, mas isso não aconteceria sem nenhum atrito, sem nenhuma efetivação da ameaça, como é que alguém, e mais ainda o coronel, e além disso estando em maioria, iria se intimidar com uma mera ameaça; com uma intimidação psicológica que nem ao menos se efetiva?

 

Deinha: Mas não foi só assim, não, Maria; não ficou só na ameaça, ainda que não tenha havido agressões físicas, mas agressões verbais houve e de um tipo velado que é ainda pior que o usual, pois os moços ficaram dizendo gracinhas petulantes e fazendo chacotas do coronel e de seus capangas. Maria, em certo momento, até eu que estava perto, e que detesto esse coronel, cheguei a ficar envergonhada, esses cabras de fora sabem mesmo como intimidar, muito mais que os daqui, fizeram toda a coisa de um modo que o coronel parecia preso em uma arapuca que foi se apertando, apertando... comprimindo os cabras do coronel uns sobre os outros, reduzindo cada um, e todos eles, a uma estatura que a própria aparência física denotava de forma gritante. Era impressionante perceber o quanto os moços se agigantavam ao redor do coronel, na mesma medida em que ele e seus capangas se dissolviam, se reduziam a um nada de uma forma tão manifesta que, por um momento, até eu cheguei a sentir vergonha e pena.

 

Maria: Vixi Deinha, mas então vai ocorrer tragédia, então o coronel vai armar aquela turma dele e ir atrás dos tais moços com as piores intenções e com certeza vai justiçar os tais moços de fora de um modo ainda pior do que eu consigo imaginar.

 

Deinha: Vai não Maria, e não vai por duas razões: uma é que o medo que passou foi grande, de um tamanho tal que ele perdeu todo o brio que um homem pode ter, todo. É bem provável que logo recupere sua empáfia costumeira, e que volte a ser ainda pior do que sempre foi, mas isso ainda leva certo tempo, e hoje é mais fácil que esteja rezando e agradecendo a Deus por estar vivo que tramando vingança. Mas a segunda razão para que não haja desforra é ainda maior: é que, pelo caminho, vindo para cá eu soube, que o moços estão em bando, em grupo grande, de modo que o pessoal do coronel não só não teria peito, como nem capacidade para enfrentar todos eles. Mas Maria, o que é mais formidável de tudo isso é que esses moços conhecem seu tio Antônio e estão vindo para cá com ele.

 

Maria: Olha Deinha, aquele grupo vindo ao longe, o andar do que vem na ponta parece mesmo o de meu tio Antônio, será que são eles já chegando?

 

Deinha: São eles mesmo Maria, me ajuda a ajeitar meu cabelo e minhas roupas, vamos nos aprontar porque eu quero estar bem linda quando for apresentada a esses moços de fora.

 

 

 

 

Cena 4, Maria, Deinha, Antônio, mãe e pai de Maria ( D. Joaquina, esposa de Felipe ), Lampião, Ezequiel e Moderno.

 

 

Antônio: Ô de casa, venham nos receber em festa que temos visita importante!

Trago aqui ninguém menos que capitão Virgulino, rei do cangaço, o governador

dos sertões, Lampião em pessoa, e acompanhado de seu Ezequiel e seu Moderno.

 

Felipe: Mas quanta honra tenho em receber figuras tão ilustres! É um prazer

conhecer pessoalmente aqueles que já conheço de nome, e cujos feitos sempre

antecedem sua chegada.

 

Lampião: Muito agradecido por acolhida tão amistosa, que é coisa que tanto nos

agrada e que é tão necessária a todos nós.

 

Antônio: Deixem-me apresentar também D. Joaquina, esposa de Felipe, Maria,

sua filha, e Deinha, amiga de Maria.

 

Felipe: Vamos sentando que temos muito a conversar.

 

Antônio: Devo alertar Felipe, que no caminho, vindo para cá, Lampião cruzou

com o arrogante do coronel Alves e lhe afrontou de uma maneira que ninguém

daqui da terra nunca tinha feito, de modo que é possível que o coronel se arme

da coragem que perdeu e venha aqui tomar alguma satisfação com Lampião,

ainda que não o tenha feito no momento adequado; mesmo assim, é sempre possível que a proximidade de uma dúzia de capangas acabe lhe imbuindo a coragem que não se manifestou na hora devida.

 

Felipe: Mas isso parece ter sido coisa muito séria, é melhor nos prepararmos para qualquer eventualidade...

 

Lampião: De antemão eu gostaria de tranqüilizar a todos; não acredito de forma nenhuma que a coragem daquele moço lhe volte ainda hoje; e conquanto eu possa sempre me enganar, já que só Deus sabe ao certo tudo o que se passa e o que ainda há de passar, eu apostaria, sem nenhum receio de perder, que a coragem do moço só há de voltar depois que eu deixar a cidade. Tenho certa experiência nesse tipo de confronto, e sei reconhecer quando ainda resta alguma bravura, algum brio num cabra, ou quando ela já se esvaiu por inteiro, e, afinal, tenho continuado a viver com base nessa minha intuição, e em tudo o que tenho aprendido nesses anos de luta, que já são mais de dez, de modo que posso asseverar que o moço em questão está nesse momento mais preocupado em se proteger, em resguardar a própria pele, que em tentar encontrar qualquer outro tipo de satisfação.

 

Felipe: Mas capitão, o que foi exatamente que ocorreu?

 

Lampião: Não chegou a ser nada de verdadeiramente extraordinário: vínhamos nós três caminhando pela cidade, quando nos deparamos com esse moço, esse tal que se auto-intitula coronel Alves, rodeado por quatro capangas. Caminhava daquele modo arrogante que tão bem caracteriza o tipo de gente que quer humilhar covardemente quem quer que lhe cruze o caminho, especialmente se for gente mais fraca e cuja fragilidade fique evidenciada por roupas modestas. Essa categoria de covarde, que tanto me enoja, que confunde humildade com humilhação, e crê que todos os despossuídos, todos os humildes, devam ser também sistematicamente humilhados, de modo a que nunca consigam erguer a cabeça, e que reconheçam pelo açoite, ou por qualquer outro meio igualmente brutal, uma autoridade que se baseia exclusivamente na força, em ameaças, no terror. Essa classe de gente, que é da mesma que assassinou sem piedade toda a minha família, e que mesmo fazendo as maiores atrocidades sempre conta com o apoio daquilo que é chamado justiça pública, e que serve para espezinhar o pobre, e para mantê-lo eternamente em condição servil, essa classe eu reconheço no instante em que boto a vista em cima, e faço questão de tratar do mesmo modo que eles tratam toda a gente, e foi isso o que fiz com o tal moço com quem cruzei na rua. Tratei de fazer-lhe ver que, ao contrário do que queria que eu pensasse, quem manda sou eu, tendo aproveitado também o momento para lhe cobrar uma quantia em dinheiro a título de tributo, acrescida de uma multa relativa à conduta insolente que ensaiava demonstrar.

 

Antônio: o que a cidade inteira está comentando é que Lampião fez com coronel Alves o mesmo que esse desaforado faz com todo o povo aqui, exigindo passagem pela calçada, mas o que Lampião ainda me contou foi que na conversa que se seguiu a isso, exigiu do coronel uma indenização devida pelo mal comportamento na rua, coisa de que achei muita graça; segundo ele o coronel haverá de entregar para ele a quantia de dois contos de réis na venda de Zé.

 

Maria: Mas o senhor humilha em público esse coronel que bem merece receber o que oferece a todos, e, não contente com isso ainda lhe rouba tamanha fortuna?

 

{murmúrios}

 

Felipe: Cala-te Maria! Então isso é maneira de se dirigir ao capitão Lampião.

 

Lampião: Deixe estar seu Felipe que a moça está certa em fazer tal pergunta e em tentar entender o que se passou. Eu também detesto ladrão, que é coisa que todos odeiam, mas tenho certas responsabilidades como governador do sertão: tenho que cuidar de meu bando que é numeroso, e que eu cuido como se fosse uma família, provendo do sustento de comida, de roupas e munição, que é muito cara, e, além disso, ainda me sinto na obrigação de amenizar as dificuldades de toda a gente pobre que vaga por esse mundo imenso e que é tanta, de modo que tal quantia, ainda que pareça fabulosa, servirá apenas para comprar munição, sendo o que sobra distribuído entre os necessitados, excetuada a quantia que costumo reservar para as festas que servem para alegrar a vida de todos, especialmente a dos mais pobres.

 

Maria: Mas então, seu Lampião, o senhor alivia esse coronel petulante de tão grande quantia mas não considera que isso seja um roubo?

 

Lampião: É como eu dizia, moça bonita de nome Maria, ladrão é cabra reles que nem merece viver, é gente sórdida, e o que eu faço é coisa muito diferente de roubar. O que faço é cobrar taxas daqueles que são ricos de tanto espremer o suor dos pobres. Cobro meu tributo e estabeleço uma ordem mais justa nesse sertão, distribuindo aos mais necessitados uma parte da quantia que lhes foi previamente negada. Desse modo, ajo do mesmo modo que o governo e seus funcionários, cobrando dos mais abastados umas módicas quantias que financiam uma justiça mais justa que a oficial, o que só seria redundância em um mundo muito diferente do que é hoje. Sendo o mundo como é vejo-me na necessidade de vagar pelas imensidões como um cavaleiro errante de outros tempos, acudindo os fracos e aliviando uma pequenina parcela do imenso sofrimento que existe ao meu redor.

 

Maria: Mas, isso é mesmo possível? o que o torna apto a sair por aí cobrando imposto?

 

Lampião: Essa pergunta não tem apenas uma, mas um conjunto de respostas. Quando fui convocado por padre Cícero, então presidente do Ceará, para combater os revoltosos liderados por Luiz Carlos Prestes, foi-me concedida a patente de capitão, e foi com ela que liderei as forças legalistas com as quais combati esses insurgentes. Naquela ocasião, é certo, o governo do Ceará arcou com todas as nossas despesas, nos armando, municiando, nos provendo de fardas e víveres, além do soldo a que fazíamos jus; em suma custeavam todo nosso bando e todas as nossas ações. Posteriormente, após a saída de Prestes do estado do Ceará, ficamos por nossa própria conta, então, de modo a distribuir justiça por esses sertões esquecidos por Deus, nos vemos na contingência de pedir aos abastados que financiem nossos esforços para contrabalançar a opressão advinda da justiça dos poderosos, e é isso o que temos feito desde então, com muito esmero e dedicação, diga-se de passagem, e até com gosto. Mas o fato é que existem os fortes e os fracos; os fortes existem para dominar os fracos, já os fracos existem para serem dominados pelos fortes, é essa a lei da vida à qual todos nós nos adequamos de um jeito ou de outro. Eu me acomodo a ela exigindo umas quantias daqueles que muito têm e que considero meus devedores.

 

Maria: Pensando bem, isso me parece uma idéia muito engenhosa. Tem por aí uns cabras bastante abonados e que não mereceriam ter nem um tostão, aliás parece mais ser a regra que aqueles que mais têm sejam os que menos valem, e os que mais oprimem, de modo que inverter eventualmente essa situação que constitui a regra, parece mesmo ter sido boa idéia. Mas quando foi que essa idéia lhe surgiu.

 

 

Lampião: Não sei se devo dizer que tive essa idéia, acho que ela me foi imposta quando, aos meus dezoito anos de idade, a polícia, a mando de uns vizinhos, já todos finados, assassinou meu pai. Não confiando na ação da justiça pública, que protegia os assassinos escandalosamente, resolvi fazer justiça por minha própria conta e vingar a morte de meu progenitor, coisa que obviamente era minha obrigação. Sendo assim não perdi tempo e enfrentei a luta. Não escolhi gente das famílias inimigas para matar, e efetivamente consegui dizimá-las consideravelmente. Para fazer isso entrei para o bando de Sr. Pereira que já conduzia essa mesma ocupação de maneira muito diligente. Foi com ele que aprendi esse ofício.

 

{nesse instante um numeroso grupo de mendigos se apresenta nas janelas da sala}

 

Lampião: Ezequiel, você que gosta de fazer essa distribuição, pegue um conto de réis separado ali no bolso externo de meu alforje e distribua para esse povo esquecido por Deus.

 

Ezequiel: Um conto? Mas então será melhor organizar todo esse povo, e aguardar todos os que ainda hão de chegar, acho até a distribuição de tal quantia seria mais corretamente executada em alguma praça no centro da cidade, onde nenhum dos necessitados seria esquecido. Que lugar da cidade seria mais adequado para encontrar e reunir o maior número de mendigos?

 

Deinha: Acho que o coreto da praça da igreja seria um bom lugar para isso. Se for posso levar vocês até lá, e ajudar também nessa distribuição.

 

Lampião: Então Ezequiel, aceite a oferta de ajuda da moça e carregue toda essa gente para a tal praça. Aproveite para conferir no caminho se Chumbinho está montando guarda corretamente.

 

 

{do lado de fora} Ezequiel: Aqueles que quiserem receber uma esmola venham comigo até a praça {Ezequiel e Deinha saem carregando a multidão}

 

Lampião: Mas como eu dizia, esse é o modo que encontrei de distribuir justiça para todo o povo, e, ao mesmo tempo em que alivio o sofrimento de uns, penalizo aqueles que são mais responsáveis pelas angústias de tantos.

 

{um grupo ainda permanece à janela}

 

Lampião: e vocês, o que ainda desejam?

 

Homem na janela: Queríamos só um autógrafo do senhor, poderia nos fazer esse obséquio?

 

Lampião: Pois não, e com muito gosto. {dirige-se para a janela onde distribui autógrafos para todos}

 

Maria: Seu Lampião, o senhor falou também em festa, pretenderia fazer alguma aqui na cidade?

 

Lampião: Maria, poderíamos deixar de lado tantas formalidades e me chamar de Lampião. Mas, você acaba de lembrar muito bem, parece ser uma grande idéia fazer um belo forró essa noite, deixar essa cidade em festa, espalhar a alegria ao redor e selar essa nossa amizade que se inicia com momentos de contentamento que venham a ser lembrados por toda a vida! Pode escolher lugar, encomendar sanfoneiro, comida e bebida, que a festa hoje, para a cidade inteira, é cortesia de Lampião.

 

Maria: Uma festa é coisa que sempre nos contenta, mas, mesmo assim, eu confesso não saber dizer porque a expectativa desse forró me alegra tanto. Então, se quiser me incumbir de organizar esse acontecimento memorável terei muito prazer em dispor tudo o que seja necessário para um tal evento.

 

Lampião: Pois então é coisa resolvida. Planeje tudo com esmero que eu arcarei com todos os custos; faça mesmo uma grande festa que venha a ser lembrada por toda a nossa vida. Aproveito também o momento para me despedir; tenho que resolver umas pendências financeiras rápidas que ainda me restam na cidade. E que a despedida seja breve já que nos encontraremos logo mais.

 

{despedidas}

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cena 5, Maria, Lampião

 

Lampião: Congratulações Maria, a festa está quase perfeita, só

o sanfoneiro é que estou achando que deixa a desejar, todo o

restante me parece beirar a perfeição.

 

Maria: Ah Lampião... mas chegou finalmente... você tem razão

sobre o sanfoneiro, mas é que tudo foi feito muito em cima da

hora, demoramos a encontrar mestre Ambrósio, que não estava

de posse da sanfona, teve que ir buscar em sua casa que fica

bem longe, e avisou que teria que dar um farto cochilo para se

preparar para a noite que ele sabe que será longa. Já contando

com a demora mandou seu aprendiz, que não está se saindo tão

mal assim, apesar de, obviamente, ainda não ser dos melhores,

mas já consegue animar uma dança como a gente consegue

perceber até pela poeira que sobe em torno do bailado.

 

Lampião: Mas você tem razão Maria, e se o sanfoneiro reserva que aí está fosse mesmo ruim não haveria dança, e muito menos ela seria tão animada. Mas, por falar em dança, me daria a honra? (oferecendo o braço a Maria).

 

Maria: Com todo o prazer. { toma o braço de Lampião e rumam para a “pista”}

 

Lampião: E eu que me queixava do sanfoneiro, já dançamos cinco músicas sem perder o ritmo e vejo que continuamos na mesma toada agora durante a sexta.

 

Maria: Cinco músicas? Mas tem certeza? Para mim parece que começamos a dançar justo agora. E eu com medo de que a música terminasse, findando com ela a dança.

 

Lampião: Desse jeito que você me abraça, Maria, eu vou querer dançar com você a noite inteira; eu te sinto como se estivesse colada a mim, mas de um jeito muito leve, assim como uma sombra, mas uma sombra quente e tão cheia que eu consigo sentir não só com a mão mas com todo o corpo.

 

Maria: Pois eu sinto como se fizesse parte de você, como se meu corpo fosse uma continuação do seu, como se eu estivesse sendo carregada por seus braços, flutuando no ar.

 

{ a dança continua por longo tempo até que o sanfoneiro faz pausa para descanso }

 

Maria: Sabe Lampião, o povo pensa que você é um bruto, um cabra selvagem e feroz, incapaz de qualquer sentimento de humanidade, mas quando te vi percebi de imediato que nada disso era real, no entanto, agora que dançamos dessa maneira tão suave, dessa forma singela, noto o quanto tudo isso é distante da realidade e fico imaginando a enorme proporção em que todos os fatos podem vir a ser distorcidos quando transpostos em palavras...

 

Lampião: Não é bem assim Maria, eu sou mesmo o bruto que me pintam e são incontáveis as vezes em que tenho agido de uma maneira tão selvagem, tão cruel, que até mesmo eu me espanto. No entanto, eu não sou apenas esse selvagem e bruto, em alguns momentos posso ser carinhoso, em outros até romântico, ainda que isso não seja coisa que diga respeito a meus inimigos, isso eles nunca virão a notar, e só conhecerão de mim a fúria. Mas não se engane comigo, quando necessário me transformo exatamente no monstro que descrevem, Maria.

 

{ a música recomeça reenlaçando os dois automaticamente }

 

Maria: Lampião, o que será aquele clarão no horizonte? Bem poderia ser um séqüito de anjos descendo dos céus para coroar essa noite tão maravilhosa.

 

Lampião: Anjo aqui só você, Maria; Maria bonita, que nesse instante fica linda com esse olhar radiante emoldurado pela luz da alvorada; desse clarão do sol que já vai nascer.

 

Maria: Mas não é possível, se agora mesmo começamos a dançar...

 

Lampião: Eu também estou sentindo uma coisa semelhante, e meio assustado com o modo mágico como o tempo passou, como se ele tivesse sido encurtado, como se a noite inteira tivesse passado muito rápido desde que nós grudamos um no outro e não nos soltamos mais. Vejo que você está sentindo o mesmo que eu, esse imenso desejo de permanecermos bem juntos, de não permitir que no separemos, e de fazer com que o tempo não passe nunca pra que usufruamos eternamente esse momento de tão enorme magia, mas, parece que quanto mais desejamos a permanência do maravilhoso instante, tanto mais ele foge de nós, escorrendo a jorros exatamente quando lhe queríamos a lentidão eterna.

 

{Maria salta no pescoço de Lampião e o beija voluptuosamente. Os dois permanecem enlaçados longamente }.

 

 

 

 

Cena 6: Lampião e Maria Bonita

 

 

Maria: Pois eu quero que você olhe bem nos meus olhos e me diga que

não esteve com mulher!

 

Lampião: Está certo Maria, se é mesmo o que você quer eu vou te

confessar: estive sim. Eu sou homem, sou macho, e se mulher fica me

dando moleza por aí eu pego mesmo, e com muito gosto, é esse o meu

jeito e não vou fingir que não seja.

 

Maria: E então faz isso por que é homem? Por que é macho? Pois para

mim parece mais que é um cachorro, seu sem vergonha! Então fico eu

aqui te esperando como uma boba, sonhando com você como uma

idiota, aguardando ansiosamente a sua volta, contando cada minuto

que passa, pensando em você o tempo todo, rezando pela sua proteção,

e tudo isso enquanto você está por aí como um animal se engraçando

com tudo que é fêmea que aparece. Que tipo de imbecil você pensa que

eu sou para ficar aqui como uma cega te esperando?

 

Lampião: Maria, mas você sabe que mulher mesmo eu só tenho uma, que é você. As outras são só por uns momentos, apenas para eu passar o tempo, para poder lembrar de você enquanto estamos distantes.

 

Maria: Mas isso é coisa que se diga, seu cachorro? {agredindo Lampião, que se defende} Então para se lembrar de mim fica correndo atrás de mulher? Mas daqui para frente eu já sei como me lembrar de você quando estiver vagando por esse mundo: botando um belo par de chifres em sua cabeça.

 

Lampião: Oh Maria, mas deixe de impertinência, mulher? E olhe o respeito que isso não é jeito de se dirigir a seu homem!

 

Maria: E como é que eu devo me dirigir a um cachorro como você, seu sem vergonha? E qual é o tratamento que você merece? Um homem que não pode ficar um minuto longe da mulher que já vai se engraçando com outra; queria ver se eu agisse do mesmo modo, dando trela para tudo quanto era homem. Mas você faz isso porque sabe que eu não sou dessas, porque sabe que eu só quero mesmo estar com você; mas fique sabendo que, de agora em diante não nos separamos mais, daqui pra frente não te largo nem só um instante, grudo em você e vou onde quer que vá, nem que seja para o inferno. Que fique bem claro: de hora em diante vou acompanhá-lo em todas as andanças, não o largo mais em lugar nenhum que vá!

 

Lampião: Maria, nós já conversamos sobre isso e eu já te mostrei que isso não seria possível, que o que eu faço é serviço para homem, e que mesmo em sendo assim, tem muito cabra que não tem colhões suficientes para encarar nem a metade do que temos de passar todos os dias; isso é serviço que mulher não agüenta.

 

Maria: Pois eu já te disse que com você eu encaro qualquer dificuldade, mas o que lhe digo que não vou encarar é ficar te esperando sabendo que você está por aí com mulher, isso é que eu não vou fazer, então, se quer me ver novamente, se ainda me quer, trate de me levar com você por onde ande, do contrário, se me deixa, quando voltar já não sou mais sua, e essa é minha palavra.

 

Lampião: Mas deixa disso, Maria. Eu acho que você teria mesmo peito para encarar essas coisas que muito macho não agüentaria nem ver, mesmo assim, tem muitos outros problemas. Eu até acredito que você não vá se queixar da falta de luxo quando andar pelas capoeiras, de toda a privação por que passamos tão freqüentemente, acho até que agüenta caminhar muitas léguas sob o sol, carregando o peso de armamento, com pouca água, pouca comida. Mas não é só isso. Você sabe que nós somos um bando só de homens, uma única mulher no meio de tantos cabras tão selvagens só pode vir a provocar discórdia. O que eu penso é que passaria por tanta privação, por tanto aperto, tanto risco, para só causar confusão, aborrecimento e desarmonia no bando. Então, mesmo que você talvez suportasse todas as dificuldades que um homem já tem que tolerar na vida do cangaço, acabaria gerando uma infinidade de problemas por ser uma mulher no meio de tantos cabras tão rústicos.

 

Maria: Mas então o empecilho para eu entrar no bando era só esse? Era apenas o fato de eu ser a única mulher do bando? Mas isso é coisa que se resolve muito facilmente, portanto, se era esse o único problema, pode contar que já foi superado e que tem mais membro no bando!

 

Lampião: Como eu disse antes, Maria, esse não e o único problema, e já citei muitos outros, no entanto, se conseguisse resolver esse, eu bem que te deixava entrar, pois em vista dele, todos os outros são muito mais fáceis de virem a ser resolvidos. Mas de que modo pensaria enganar todos os jagunços? E por quanto tempo imagina que conseguiria fingir que é homem, inclusive na frente daqueles que te conhecem.

 

Maria: Ôxe Lampião, mas parece que não me conhece. E eu lá ia querer fingir que sou homem? Não sabe o quanto eu me orgulho de ser mulher, e mais ainda de ser mulher-macho? Pois me surpreende é você pensar que eu ia querer me fazer de homem; sou mulher em todos os sentidos e muito me orgulho disso, e vou mostrar que sou mulher de coragem, e até mais do que muitos homens.

 

Lampião: Mas Maria, parece então que é surda; e como evitaria a confusão, toda a balbúrdia e desacordo que uma mulher fatalmente acarretaria no bando?

 

Maria: Mas Lampião, você não disse que o problema seria o fato de eu ser a única mulher no bando?

 

Lampião: Mas e não é? Como seria possível uma única mulher vivendo no meio de tantos cabras de vida desregrada? quanta confusão não acarretaria? quanta discórdia?

 

Maria: Pois então, Lampião, a solução é muito simples: basta entrarmos várias mulheres, simultaneamente. A maioria dos cangaceiros tem mulher, é claro que não seríamos todas as que viríamos, mas seríamos um bom número, o suficiente para que não fôssemos vistas com estranheza, acabaríamos sendo uma parcela considerável dentro do grupo, com a qual o restante logo se acostumaria, seria só questão de tempo, mas de pouco tempo, até que o fato deixasse de ser novidade e passasse a ser considerada a coisa mais natural do mundo, e que é mesmo: homens andando com suas mulheres.

 

Lampião: {rindo} Pois se você acredita que consegue encontrar um grupo de malucas que resolvam se arriscar nessa vida dura e errante de cangaceiro que foi talhada para homem... Maria, você parece que é doida! Mas se conseguir convencer meia dúzia de mulheres, e se todas se mostrarem aptas para essa vida, você e todas elas poderão entrar para o bando, tem minha palavra.

 

Maria: Lampião, meu homem, pode desde logo comunicar nosso ingresso porque já falei com Dadá, com Lídia, Cristina, Enedina, com Maria, mulher de Pancada... e todas têm a mesma opinião que eu e também dão mostras de coragem. Tenho certeza que várias outras aderirão à idéia para permanecerem juntas a seu homem. Pode contar conosco desde já, é certeza.

 

Lampião: Pois se for assim, que seja: pago para ver!

 

 

 

 

 

Cena 7: O bando

 

 

{Entra o bando cantando uma cantiga

popular, as vozes são quase ameaçadoras,

de um modo apenas velado. As palmas que

se ouvem em seguida, fazendo calar todas

as vozes são mais nervosas e intimidantes}.

 

Lampião: {palmas} Oh de casa. {palmas}...

{palmas insistentes} Oh de casa, pode

aparecer que eu sei que tem gente aí, se

não aparecer logo eu arrombo a porta e

acaba sendo pior, o melhor é tomar

coragem e aparecer logo.

 

Voz de dentro da casa: Aqui ninguém está

com medo não, mas pode ir andando que eu não te conheço e nada tenho a tratar com você.

 

Lampião: Vim de longe tratar de assunto muito sério e exijo ser recebido condigna, civilizada e hospitaleiramente. Fizemos longa jornada sob sol escaldante e estamos cansados e sedentos, assim sendo, pedimos acolhida condizente com nossas necessidades.

 

{pausa ligeira}

 

Voz: Pois eu já disse e repito: aqui não terá nenhuma acolhida, vá logo andando para outros cantos.

 

Lampião: Seus modos são muito grosseiros e ultrajantes, mesmo assim vou lhe conceder uma chance de pensar melhor e reconsiderar sua posição, caso nos peça desculpas poderemos voltar a tratar do assunto que me trouxe aqui, do contrário, considerarei gravíssima a sua ofensa, e entrarei a força nessa casa para exigir pessoalmente as satisfações que me deve, juntamente com um indenização pelo modo aviltante como nos tratou a todos.

 

{A cantiga recomeça, agora grave e lenta}

 

{Bando canta}

Veja quem já desponta no horizonte,

Quem já vem chegando,

É a morte,

É a morte tenebrosa,

A morte horrenda,

Vem com ela o medo,

Ao seu lado a dor.

Nenhuma prece iludirá a morte,

Nenhum reza a afastará,

Pois da morte ninguém escapa.

 

{canção}

Reze agora uma oração, mas que seja só para encomendar a própria alma, pois ela em breve necessitará encontrar seu caminho na vastidão de outro mundo.

Usufrua seu medo, se embeba destes que serão seus últimos momentos de alegria, pois logo estará no inferno, queimando em dor eterna.

Queimando em dor eterna.

 

{Enquanto canta a cantilena macabra o bando se espalha pela propriedade tomando posição para o assalto violento. A casa está cercada e os cangaceiros preparados para a batalha.}

 

Lampião: {grito} Agora!

 

{À ordem de Lampião ouve-se extrema balbúrdia desencadeada por inúmeros estampidos de tiros, seguidos por batidas das portas e janelas escancaradas pelos pés dos cangaceiros}

 

Lampião: Quem quiser continuar vivo que saia agora desarmado.

 

{Ninguém sai. Lampião confabula com outros cangaceiros, dá novas ordens e redistribui o bando.}

 

Lampião: Ataque!

 

{Muitos tiros, confusão e gritos. A resistência cessa rapidamente. Cinco homens são trazidos sob a mira de espingarda, dois outros, muito feridos, chegam arrastados, entre gritos e gemidos, logo em seguida vem carregado um homem morto.

 

Lampião: Então já morreu o petulante que ousava me afrontar, talvez seja melhor assim, embora eu tivesse lhe dado morte muito pior, mas isso agora pouco importa. Agora o que quero saber onde é que está o dinheiro e também todos os objetos de valor. Quero todas as jóias, tudo o que for de prata, e qualquer badulaque que possa valer alguma coisa, e se tentarem me esconder qualquer coisa me pagam caro! Você aí, seu cabra {erguendo com a faca o queixo de um jovem que começa a sangrar} vai me mostrar onde estão todas as coisas de valor, e trate de não tentar ocultar nada, especialmente dinheiro. Quinta-feira, continue montando guarda e mande parte de seu grupo procurar ao redor que ainda deve ter mais um povo por aí. Nevoeiro, vasculhe dentro da casa que certamente há mais gente escondida, ainda não encontramos as mulheres.

 

{no mesmo instante chegam Mariano, Cravo Roxo e Canário com as mulheres.}

 

Cravo Roxo: Mesmo que não encontremos lá muito dinheiro, as mulheres daqui já compensam nosso esforço, sete delas são bem jovens e bonitas, e ainda tem outras que não são feias. Mas essa aqui, que fui eu quem encontrou, eu quero para mim.

 

{Vários cangaceiros se aproximam e rodeiam as mulheres, Maria toma-lhes a frente.}

 

Maria: O que é que você quer para você? Pensa que mulher é bicho? E o que ia querer fazer com ela? Não está percebendo o nojo que você lhe causa?

 

Dadá: Parece que é isso mesmo, e que eles pensam que mulher é como um bicho, um bode, uma ovelha, que eles podem dispor como bem entendem, e parecem também nem notar o quanto desagradam, o quanto provocam de nojo quando se impõem dessa maneira para uma mulher que não os quer.

 

Maria: É assim mesmo, e o mais curioso é que, ao tratar uma mulher dessa maneira, como se ela fosse um animal, é o próprio homem que acaba se confundindo com um bicho; como se assemelha a um animal o homem que, desse modo vil e mesquinho, deseja se apossar de uma mulher contra a vontade dela. E causam tanto nojo que é impossível para quem está em torno não sentir, que dirá para a mulher com quem o animal pretende se espojar. Como pode alguém ter prazer ao causar tanto asco?

 

Dadá: Eu estou olhando esses homens querendo estar com mulher desse jeito e já sentindo antecipadamente uma parte do nojo que isso causa, fico pensando se alguma mulher, algum dia no futuro, ainda vai querer deitar com um homem capaz de causar tanta repulsa.

 

Maria: Mas não é mesmo? Será que eles não percebem quanta repugnância causa esse comportamento nojento? Não notam o quanto se tornam repulsivos e asquerosos fazendo uma coisa assim? Deixe uma mulher saber que o cabra já fez algum dia um papel tão nojento que vai ser difícil que alguma queira um dia se deitar com ele.

 

Dada: Mas, acredita que estou olhando para a cara desses cabras e vejo que uns deles nem percebiam nada disso, que estão espantados com tal revelação?

 

Maria: Pois o que eu estou vendo é que esse tipo de abuso não pode continuar, isso é nojeira demais para que possa ser permitido, temos que acabar com essas práticas repugnantes de uma vez por todas! Aqui nesse bando não se fala mais nessa coisa nojenta de se impor para mulher quando ela não deseja.

 

Lampião: {Com um ar meio contrito} E é mesmo. Eu nunca tinha olhado a coisa por esse ângulo, mas vocês têm razão, isso é mesmo coisa muito nojenta. Vamos ter que dar fim a essa prática que é mesmo tão repulsiva e execrável quanto vocês dizem. Daqui para a frente ninguém mais aqui nesse bando toca em mulher que não queira ser tocada.

 

Nevoeiro {voltando}: Não tem mais ninguém na casa, está vazia. Mas olhe o que eu encontrei lá dentro, uma caixa de jóias! Tem bastante ouro aqui, acho que tem bom valor. Também tinha esse dinheiro escondido junto com as jóias... ainda encontrei uma prataria com certo valor, e eu aposto que é tudo o que há, fora isso só ninharia. De qualquer modo, convém dar mais uma vasculhada pela casa e apertar os caboclos para ver se eles sabem de algo mais.

 

Lampião: Deixe comigo que isso já foi feito, mas parece que os cabras só se referiram mesmo à caixa em cima do armário alto do quarto, não era lá que estava?

 

Nevoeiro: Foi lá mesmo que encontrei.

 

Lampião: Passe para cá juntamente com o dinheiro, bom saber que os cabras estavam falando a verdade.

 

 

Cena 8 Maria, Parteira, Deinha, Lampião

 

 

Maria: {gritos}

 

Parteira: Força Maria que agora vai.

 

Maria: {grito mais longo seguido de alívio}

 

Parteira: É uma menina, e tão linda... moreninha igual à mãe. E já tem cara de zangada, essa vai ser arretada.

 

Maria: Dá ela aqui, deixa eu segurar minha filha por um pouco.

 

Deinha: E agora olhando a menina, não vai mesmo mudar de idéia?

 

Maria: Você sabe o quanto eu gostaria de ficar com ela Déia, mas não posso, é impossível vivendo essa vida que vivo. Conseguir levar a gravidez até o final já foi uma luta, acho que foi sorte não ter acontecido como das outras vezes, embora eu talvez esteja menosprezando Expedita que parece ser uma lutadora ferrenha.

 

Deinha: Mas iria deixar de sair à mãe?

 

Maria: Mas as coisas não têm sido fáceis para ela, mesmo antes de nascer. Essa vida que eu levo não combina com criança, são imensos sobressaltos, seguidos de correrias desenfreadas, de esforços descomunais, riscos, tensões, aperreios, raivas, lutas, e tudo acontecendo em uma sucessão quase ininterrupta. Não há nunca um repouso que seja totalmente relaxado, há sempre uma orelha em pé, um olho semi-aberto; a preocupação com a própria vida é constante.

 

Deinha: Dá para fazer uma idéia de como é, embora, para saber de fato como seja, eu tivesse que sentir o mesmo, coisa que não pretendo fazer nunca. Mas agora, com sua filha em seus braços, não pretende mudar de vida, deixar o cangaço e criar você mesma a sua menina?

 

Maria: eu pensei muito nisso Deinha, e ainda penso. Mas eu não posso mais deixar o cangaço, não sem Lampião. Antes de ter entrado para essa vida eu não era tão visada, acho que Lampião tinha tanta mulher em todo canto que não dava para vigiar todas, ao menos era o que se pensava, então eu vivia relativamente sossegada, e usualmente não havia perigo em que ele me visitasse; mas agora seria diferente, os homens montariam tocaia em torno de mim, e quando meu homem aparecesse pulariam sobre ele. Os riscos em me visitar seriam enormes, isso sem falar em mim mesma, que poderia ser presa só para atrair Lampião. Então não há muito o que pensar, seria impossível carregar uma criança pelas capoeiras, ao relento, enfrentando batalhas... absurdo até pensar nisso, de modo que a única alternativa é essa: entregar a menina para alguém de confiança criar.

 

Deinha: Mas como vai ser isso?

 

Maria: Pois é, nem mesmo criar a menina à distância será fácil, a primeira precaução é ocultar a existência de minha filha. Tenho passado os últimos meses aqui, isolada, de modo que poucos saberão da ocorrência desse nascimento. Entregarei Expedita para uma pessoa de total confiança, mas cuja identidade permanecerá secreta para quase todos. Nem a você, que de resto não a conhece, direi quem seja, até para te proteger, pois não convirá a ninguém saber a identidade de tal pessoa. Então, sempre que puder darei uma passadinha para ver minha filha, para permanecer uns instantes com ela, mas sei que isso será muito pouco, mais ainda para ela do que para mim, e no entanto, as coisas terão que permanecer desse modo até que Lampião canse dessa vida e que nós nos retiremos para uma existência mais tranqüila.

 

Deinha: E você acha mesmo que isso acontecerá algum dia, Maria?

 

Maria: Já faz tempo que Lampião fala em parar, diz que permanece só mais uns três anos nesse negócio, só para fazer um bom pé de meia, e que depois pára e se estabelece como comerciante, não sei se vai dar certo, não sei se vai mesmo acontecer, mas é sonho antigo do homem, e que eu adoraria, mais agora que temos Expedita.

 

Deinha: Nossa, seria bom mesmo voltar a ter uma vida normal, tranqüila...

 

Maria: Sabe Deinha, essa vida de aventura é muito dura, muito atribulada, mas muito estimulante também. Passamos por inúmeros momentos muito agradáveis e excitantes, dos quais eu certamente sentirei muita falta. Mas eu acho que o contexto da ocasião interfere fortemente em nossa disposição para permanecer nessa vida ou parar. Acredito que, para Lampião, a idade logo vai pesar, é o que dizem os mais velhos. Quanto a mim o que está pesando mesmo é essa menina em meus braços. Vou ter muita vontade de permanecer com ela.

 

Lampião: Maria, mande preparar a menina que quanto mais cedo for levada para lugar seguro melhor. Deixe que ela fique aos cuidados de nossa parteira que já trouxe ao mundo mais de trezentas crianças e que já cuidou de outras tantas. Azulão, que é homem de confiança, sabe a quem levar e a escoltará até o endereço correto.

 

Maria: Está certo Lampião, deixe só eu dar um último cheiro em Expedita, mas, além disso, embale sua filha por uns instantes.

 

 

 

 

 

Cena 9: Tenente Bezerra, Sargento Rodrigues, tropa de policiais.

 

 

Tenente Bezerra: Fomos informados de que Lampião e seu bando

estão nas redondezas, temos informações seguras do local onde se

reuniram para dormir, então, o que temos que fazer é chegar lá

antes que acordem, cercar o lugar e não permitir que ninguém

escape, especialmente Lampião, que vocês poderão reconhecer

por não ter um olho. Sargento Rodrigues estará no comando da

operação.

 

Sargento Rodrigues: Nossa volante consta de quarenta e oito

policiais. Fomos informados de que a parte do bando acoitada

aqui nas redondezas não chega nem a quarenta, o que nos deixa

em maioria. Mas nossa principal vantagem não será o número, e

nem mesmo a surpresa; recebemos, especialmente para essa

operação, uma metralhadora Hotkiss cujo poder de fogo Lampião não pode nem sonhar, por isso, acredito que todo o bando tentará bater em retirada assim que perceber nosso poderio, de modo que, provavelmente, o confronto será brevíssimo, com os cangaceiros lutando pela vida e tentando escapar de nosso fogo. Os que já viram uma metralhadora em ação concordam que o seu correto posicionamento nos levará fatalmente à vitória, de modo que será importantíssimo que nos aproximemos silenciosamente até alcançar a o local mais adequado para dispor o armamento, em seguida bastará abrir fogo e fuzilar os bandidos, com o cuidado de não permitir que escapem, abatendo o maior número possível de cangaceiros. Alguma pergunta?

 

{O sargento olha em torno enquanto a tropa permanece calada e atenta}

 

Sargento Rodrigues: Outra coisa importante; temos ordens de não fazer prisioneiros, deveremos executar cada um dos facínoras que conseguirmos pegar, decepar-lhes a cabeça, e levar o maior número possível de cabeças para a capital. {Vários policiais se persignam, há certo alarido na tropa, uns parecem se animar com a iminência da carnificina, enquanto outros se comovem ante o mesmo vislumbre. Há ligeira pausa na fala do sargento.} Parece haver alguma dúvida sobre as ordens, alguém quer fazer uma pergunta?

 

Policial 1: O que devemos fazer se algum deles se render?

 

Sargento Rodrigues: As ordens são claras: não faremos prisioneiros! Devemos executar todos os que forem capturados e cortar fora suas cabeças. Temos que ensacar as cabeças desses celerados e levá-las para exibição na capital. Compreendido?

 

Policial 2: E se tiver mulher entre eles?

 

Sargento Rodrigues: Se tiver mulher junto é bandida também, morre do mesmo jeito.

 

Policial 3: Eu fui escolhido para integrar essa volante por ter demonstrado bravura em muitos combates; já atirei em muito bandido, ocorrendo até de ter matado mais de um em situações nas quais era ele ou eu. Mas eu sou cristão, e fico pensando que não me agradaria ter que executar um homem desarmado que me pede clemência.

 

{rumores na tropa.}

 

Tenente Bezerra: Pois as ordens são essas, e são ordens que vêm de cima, eu preferiria empalar todos esses malfeitores, e exibir todos eles por aí assim, com uma vara espetada no rabo, mas as ordens não são essas; as ordens que recebemos foram para decepar a cabeça desses bandidos, e levá-las dessa maneira, só as cabeças separadas dos corpos para serem expostas na capital. E todos vocês sabem que ordens são ordens, e que existem para serem cumpridas, de modo que quem não estiver satisfeito com isso não deveria ter nem entrado para a corporação; de qualquer forma, sempre é tempo, para quem estiver descontente, de abandonar a força policial quando quiser.

 

{silêncio}

 

Tenente Bezerra: Continue sargento.

 

Sargento Rodrigues: Então estamos todos cientes das ordens. Alguém tem mais alguma pergunta a fazer? {breve pausa} Se não há mais nenhuma dúvida podemos partir imediatamente para pegar os facínoras durante o sono. Partamos.

 

 

 

 

 

Cena 10, emboscada: Maria, Lampião e vários homens da tropa.

 

 

Maria: Lampião, que é que você tem que está se mexendo

tanto? Por que é que já está acordado tão cedo que ainda

nem raiou o dia?

 

Lampião: É mau pressentimento Maria. Escute os pássaros

cantando, não falta o gorjeio dos mais ariscos? Ao redor

dessa gruta foi sempre tão tranqüilo e tão cheio de

pássaros.

 

Maria: Levante homem vamos espreitar para ver o que

está acontecendo, quem está de guarda hoje?

 

Lampião: Está de guarda Mergulhão, que é bom vigia,

mas essa hora em que o céu começa a clarear costuma

dar um sono, melhor não confiar. Vou dar uma olhada

e voltar a dormir, senão não ficamos tranqüilos.

 

Maria: Também estou pressentindo o perigo, vou até lá com você.

 

Lampião: E não tem medo do perigo, não?, fique aqui me aguardando.

 

Maria: Com você, Lampião, não tenho medo de nada; com você vou até o inferno! Mas olhe ali, acho que alguém mais já despertou, e parece ter sido Quinta-feira.

 

Lampião: Quinta-feira, por que despertou tão cedo?

 

Quinta-feira: Não sei dizer, mau pressentimento... parece que tem algo errado, mas não sei o que é, de qualquer forma estou meio agoniado.

 

Lampião: Também estou sentindo a mesma coisa. Vá lá fora ver se tem algo errado, dá uma circulada ao redor e depois retorna para ficarmos tranqüilos.

 

{Quinta-feira não chega a dar três passos quando começam os disparos, vindos de todos os lados. O cangaceiro é abatido. Confusão generalizada, vários homens do bando deixam a gruta correndo desordenadamente, desnorteados pelas inesperadas rajadas de metralhadora.}

 

Lampião: A coisa está feia, tem até metralhadora, coisa com a qual não contava... se conseguirmos nos apossar daquela preciosidade viramos o jogo, do contrário vamos ter muitas baixas, mas além de metralhadora tem muito fuzil, acho que estamos em minoria. {pausa} Maria, vou tentar tomar a metralhadora. {dando ordens} Corisco, Caixa de fósforo, Tempo Duro, vocês correm para fora da gruta, saem pela direita margeando a pedreira, vão atrair o fogo para vocês. Em seguida saem Elétrico, Cajarana, Luiz Pedro e Moeda. Logo atrás desses saio eu também, vamos tentar pegar a metralhadora. Todos os outros dão cobertura e fazem fogo quando a gente sair. Todos preparados. Vamos lá: Corisco, Caixa de fósforo, Tempo Duro, correndo... os outros, vamos lá, agora.

 

{Tiroteio generalizado, Lampião cai. Os tiros se concentram sobre ele}

 

Maria: {grito desesperado} Lampião!

 

{A confusão toma conta da gruta, debandada geral, cada um por si, desorganizadamente. Maria corre ensandecida em direção a Lampião que agora jaz imóvel no chão, tem os olhos fixos em seu homem e mal percebe o inimigo que surge repentinamente a seu lado. O homem levanta o facão, e, em um único golpe decepa a cabeça de Maria, cujo corpo cai sobre o peito do de Lampião}.

 

 

 

 

 

Cena 11, completa escuridão: Lampião e Maria.

 

 

Lampião: É você Maria?

 

Maria: Lampião!

 

Lampião: Ainda bem que você apareceu Maria, estava

frio aqui... mas que lugar estranho será esse? Que coisa

esquisita é essa que está acontecendo, essa escuridão

tão forte, tão repentina, o que será isso? Será sonho?

Ou teria sido sonho aquela artilharia medonha, aquele

fogo cerrado sobre nós? Será que ainda é noite alta na

caverna escura?

 

Maria: Vou te dizer, Lampião, acho que o que aconteceu

foi que nós morremos.

 

Lampião: Oxe Maria, e como poderia ser isso? E então

não estamos nós dois aqui no meio dessa escuridão?

como poderíamos ter morrido?

 

Maria: Sabe Lampião, aquele tiroteio insano, aquela metralhadora... aquilo não foi sonho não, eu também me lembro.

 

Lampião: Que coisa, que tiroteio descomunal, que loucura, era bala para todo lado, uma confusão dos demônios, um verdadeiro inferno.

 

Maria: Aquieta Lampião que não é hora de falar dessas coisas.

 

Lampião: Mas em meu sonho foi assim, lembro da metralhadora que não parava de cuspir fogo, tiro que nunca acabava...

 

Maria: Sei como foi; e então você deu ordem para Corisco, Caixa de Fósforo e Tempo Duro saírem para atrair o fogo, e mandou Elétrico, Cajarana, Luiz Pedro e Moeda de assalto à metralhadora, e saiu logo atrás dos últimos.

 

Lampião: Foi isso mesmo Maria, fico pensando como é que você pode ter adivinhado meu sonho... mas não lembro do que aconteceu em seguida, lembro de ter levado uma ferroada quente no peito enquanto corria, e que depois acordei aqui nessa escuridão; estava vagando sozinho e sem rumo perdido nesse completo negrume até que você chegou.

 

Maria: Pois eu lembro mais coisa desse sonho, Lampião: lembro que você caiu enquanto corria, e que no lugar onde caiu não parou de chover bala. Então eu me levantei e corri para onde você estava, não recordo nem se carreguei arma comigo. No meio daquela balbúrdia ainda lembro de ter chegado bem perto de onde você estava caído, mas antes mesmo que eu conseguisse tocar em você, vi de relance um cabra erguendo um facão bem em minha cara. No instante seguinte eu já estava aqui com você nessa escuridão.

 

Lampião: Será então que nós morremos?

 

Maria: Lampião, eu acho que sim.

 

Lampião: Estranho isso, nunca pensei que a morte fosse assim... e agora que pensei nisso passei a sentir ainda mais frio.

 

Maria: Ninguém sabia como era a morte, mas a gente sempre soube que um dia iria descobrir. Parece que chegou nossa hora.

 

Lampião: Maria, é você junto de mim?

 

Maria: Sou eu sim, você falou que estava com frio, decidi te abraçar. Tem tanto tempo que a gente não se abraça assim tão apertado, se entregando inteiro para o outro sem pensar em mais nada.

 

Lampião: É mesmo, já tem tempo sim. Como é estranha essa sensação Maria, sinto você inteirinha junto de mim, mas não consiga te tocar, sinto que estamos bem juntos, e que você até me aquece, e, no entanto não consigo te apalpar, te pegar. Vou te confessar Maria, que antes de você chegar eu estava com uma sensação muito ruim, uma confusão generalizada de sentimentos, lutando contra uma tristeza infinita que insistia em me invadir, cheguei até a sentir medo sem saber do quê.

 

Maria: Devia ser do desconhecido; o que causa medo mesmo é aquilo que a gente não conhece, e aqui tudo é muito estranho e diferente de qualquer coisa que conhecemos.

 

Lampião: Maria, esse lugar estranho, frio e escuro é muito apavorante.Você não sente nem um pinguinho de medo?

 

Maria: Com você ao meu lado, Lampião, eu não tenho medo de nada; com você eu vou até ao inferno.

 

Lampião: Melhor nem falar nisso, ou a gente acaba indo mesmo pra lá.

 

Maria: Pois, se for com você, até para lá eu vou com prazer

 

Lampião: Maria, fique bem aconchegada, bem juntinho de meu peito enquanto a gente se acostuma com isso aqui e decide o que fazer, se é que há algo a ser feito em meio a trevas tão profundas e sem fim.

 

Maria: Lampião, eu já sei o que fazer, que é tudo o que eu sempre quis desde o instante em que nos conhecemos e que é só te abraçar, abraçar e abraçar.

 

Lampião: Pois abrace muito que quando você me aquece reduz essa friagem intensa que ameaça trazer a tristeza avassaladora que parece querer me dominar por completo.

 

Maria: Vou te abraçar muito sim, que eu não quero outra coisa. Agora eu sinto que finalmente consegui o que eu sempre quis, Lampião, que é ter você inteiro para mim.

 

Lampião: Então me abraça Maria, me abraça um pouco mais.

 

 

 

                    FIM

 

 

 

 

Durante as décadas de 1920 e 30,

Lampião comandou seu bando pelos

sertões nordestinos em uma cruzada

contra os poderosos. Havia dois lados,

Lampião se encontrava em um, a

polícia em outro; opressão e terror

reinavam em ambos, irmanados na

mesma fúria, na mesma moral

injustificável e implacável.

 

Em 1938 Lampião, Maria Bonita e

mais nove cangaceiros foram

executados e degolados pela polícia.

As cabeças ficaram expostas ao público

até serem enterradas em 1969.

 

 

bottom of page