top of page

NÃO-LINEARIDADES

CONTEMPORÂNEAS

por  Gustavo Gollo

                                                    A fita de Möbius, os policiais e as manifestações 

Quase todas as superfícies possuem dois lados; uma folha de papel possui p verso e o reverso; uma bola possui o lado de fora e o de dentro; a fita de Möbius possui apenas um único lado, o que nos parece estranho. 
 
A construção de uma dessas fitas é bem simples; se colamos as

duas  pontas de uma fita, uma na outra, fazemos um anel (ou

pulseira, ou colar);  mas, se antes de colar torcemos a fita por meia

volta teremos a fita de Möbius, basta isso. Se deslizarmos o polegar

pela fita percorreremos em toda, de “um lado” e de “outro”, já que

ela só tem um único lado. 

 

O policial sobe o morro para mostrar quem manda, também maltrata o manifestante pelo mesmo

motivo, usa sua arma de dissuasão como instrumento de tortura. O gás de pimenta foi idealizado

para dissolver multidões ao ser pulverizado à distância; inserido no olho do manifestante é tortura,

crime hediondo e covarde. 
 
O policial que tortura e mata é um criminoso fardado. 
 
O bandido no morro aprende bem a lição ensinada pelos policiais: manda quem tem o poder. O policial manda, dá as ordens, consegue isso porque está armado; os bandidos aprendem, fazem o mesmo, também se armam, também querem mandar. 
 
O policial não sabe que está ali para cumprir e fazer cumprir as leis, acredita ser o seu dever botar moral, mostrar quem manda, e é isso o que ele ensina. O bandido aprende, torna-se igual a ele. 
 
O manifestante talvez saiba que existem leis, talvez creia que elas devam ser cumpridas por todos. Mas, que lição ele recebe junto com a pimenta no olho, depois de imobilizado à força? O que aprenderíamos se, imobilizados por policiais armados, recebêssemos uma carga de pimenta nos olhos? Fico tentando imaginar os sentimentos do cidadão desorientado, incapaz de abrir os olhos ardentes, momentaneamente cego, à beira do pânico, temendo a cegueira definitiva; a desorientação no tempo e no espaço, os safanões contínuos. 

 

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

​

​

Difícil imaginar o que passa na cabeça de um cidadão nesse momento, mas acredito que lhe venha ódio, um ódio cego e intenso. Talvez seja essa a lição da pimenta no olho jogada pelo policial; o ódio cego e intenso. 
 
Talvez seja esse, exatamente, o sentimento do policial ao torturar o manifestante, ao jogar pimenta em seus olhos, já o tendo dominado. O policial o quer ao seu lado, quer o manifestante odiando tudo, tanto quanto ele odeia; a lição é de ódio, de ódio e cegueira. O bandido do morro também sabe odiar, também já aprendeu a mesma lição, também a ensina. E estamos todos do mesmo lado, do único lado da mesma fita, embora nos confrontemos como se estivéssemos em dois lados. E somos todos iguais, o bandido do morro, o bandido fardado e o manifestante enlouquecido.  

O papel da polícia tem sido o de acirrar ódios, é ela que engrossa as manifestações.

 

 

 

 

 

Sobre a ignorância ativa

 

 

A ignorância exerce um estranho e poderoso fascínio sobre certos ignorantes, capaz de os manter cativos. Encantados por essa estranha força, afastam-se sistematicamente da razão, buscando ativamente qualquer ideia sugestiva de irracionalidades. Não espanta, por isso, o fato de permanecerem imersos em trevas profundas, cada vez mais distantes da luz da razão. É a fascinação pelas trevas, e não pela luz que os guia, deixando-os assim perambular como cegos pelo mundo.

 

Se uma boa teoria, como a mecânica newtoniana, ou a relatividade, explica racionalmente uma infinidade de coisas, isso a torna pouquíssimo atraente para os ignorantes. Mas acrescente a ela uns fortes temperos de irracionalidade, umas considerações abstrusas, contraditórias e incompreensíveis, como ocorreu com a teoria quântica, e ela adquirirá de imediato um forte interesse para os ignorantes, atraídos, de fato, pela nebulosidade ali presente, e exatamente pelas facetas mais incompreendidas, ou despropositadas. (Os físicos aceitam de bom grado o atributo “abstruso” aplicado à teoria quântica. Surpreendentemente, rejeitam e protestam contra “disparatado”, “contraditório”, “ilógico”, ou qualquer outro sinônimo dessa palavra).

 

Também demonstram profundo interesse pelas mais variadas sandices místicas, recebidas como sabedorias fulcrais, e, via de regra, por qualquer tolice explicativa “sustentada” por uma “lógica” oblíqua, por argumentação capenga, mas, frequentemente embaraçosa e pegajosa, como se francamente emaranhada, estorvando as tentativas de simplificação das ideias e argumentos que possibilitariam o esclarecimento das questões debatidas. Uma das arapucas tradicionalmente propostas pelos ignorantes ativos, armadas por eles, mas, das quais são as verdadeiras vítimas, consiste em enredar as ideias de uma maneira amarfanhada, de emaranhar os raciocínios embaraçá-los absurdamente na tentativa de laçar ou embolar seus antagonistas, deixando-os no mesmo estado de confusão em que eles próprios se encontram. Fascinados pela ignorância, e pelos métodos impostos por ela, sistematicamente evitam a simplificação dos raciocínios, o isolamento das partes que os compõem, a definição dos conceitos utilizados; sistematicamente tentam impedir qualquer tentativa de esclarecimento, lutando ativamente para jogar o antagonista no mesmo estado de confusão em que o ignorante ativo se encontra, incapacitado de libertar-se da barafunda, ele mesmo.

 

Essa classe de ignorantes, sistemáticos, cuja ignorância não decorre simplesmente da inacessibilidade ao conhecimento, mas de sua recusa, via de regra rejeita a lógica, a renega; também detesta a matemática, disciplina abominável; a tais “banalidades”, “trivialidades reacionárias”, privilegia conhecimentos muito mais profundos, como os advindos de forças ocultas, místicas e inexplicáveis.

 

A ignorância é ladina e muito frequentemente se alimenta a si mesma, trata-se de criatura ativa e operante, estando sempre do lado do poder, que também a alimenta. A ignorância é reacionária, mas frequentemente distorce esse fato, disfarçando-se no exato contrário, a ignorância também é vil.

 

O poder e seus asseclas mais obstinados, os fascistas, divulgam amplamente um suposto conservadorismo da lógica, um propalado reacionarismo das luzes da razão. Fazem-no porque a razão é a única força efetiva contra o poder, seu único freio. Qualquer outra tentativa de antagonizar o poder, que não através da razão, resulta, contrariamente, em seu fortalecimento. Embora de aparência rebelde, a ignorância ativa é a filha dileta do poder.

 

 

 

Sobre as relações de poder na nova era

 

 

A nova era chegou a nós em formato digital, acarretando profundas alterações nas relações de poder.

 

Hoje, um único indivíduo pode escrever uma história, compor uma trilha sonora para ela, executar a composição com uma roupagem harmônica elaborada, filmar a história, atuando, dirigindo e produzindo o filme, e apresentar o produto de sua criação através da rede de computadores a milhões de pessoas.

 

Embora a possibilidade existisse antes, e já tivesse sido executada por Chaplin, isso só foi possível graças a um alto investimento, e à popularidade do executor. De fato, era impossível uma pessoa comum, até mesmo, comprar uma câmera cinematográfica. Obras mais baratas, como as literárias, esbarravam na completa impossibilidade de distribuição por parte do autor, sendo necessária a intermediação de uma editora.

 

Hoje, as possibilidades de expressão dependem fundamentalmente do que se tem a dizer. O que corresponde a uma profunda alteração nas relações de poder.

 

Os poderosos ainda possuem o poder de amplificar sua voz até extremos, conseguindo até mesmo utilizar outras vozes para falar por si. E, no entanto, para tudo isso é preciso ter o que dizer.

 

 

Estamos saindo de uma era em que a imagem de uma pessoa era composta, fundamentalmente, em lojas. O indivíduo comprava suas roupas, seu carro, e saía nas ruas sob essas molduras, sendo essa, basicamente, a sua imagem.

 

Na nova era, a imagem virtual das pessoas é mais conhecida que a imagem real, mais ouvida também. Nossas ideias não se encontram mais restritas aos limites sonoros de nossa voz, podendo ser amplificadas por todo o mundo. O conteúdo da pessoa vai ganhando tanto valor quanto a moldura.

 

As redes sociais, e outros sites, permitem a divulgação quase ilimitada de nossas ideias, uma imensa fonte de poder. Para usá-lo, no entanto, precisamos ter algo a dizer. Os que têm ideias propõem novos caminhos a seguir, novos rumos. Os que não as têm, apenas, seguem o rebanho.

 

 

Somos um país de gente ignorante. Até bem pouco tempo a maioria não sabia escrever. Hoje, bem poucos conseguimos ler as legendas no cinema. Não é de admirar que quase nada tenhamos a dizer, o que fica claro ao consultarmos as opiniões manifestas nas redes sociais, uma imensa algaravia de psitacismos.

 

Não gosto do poder; refiro-me ao conluio dos poderosos, a todo o imenso sistema organizado para tanger as populações, o gado humano. Mas creio no poder individual, na capacidade de definir nossos próprios rumos, nossos próprios caminhos, de se rebelar contra as direções impostas ao rebanho pelos poderosos, de se negar a segui-los estupidamente.

 

Para definir nossos caminhos, no entanto, é preciso termos alguma visão do mundo ao redor, é preciso conhecimento. Os que sabem, apenas, seguir os passos dos que estão à sua frente não têm escolha, seguirão suas ordens, como bois atrelados a cangas.

 

Os que puderem escolher, traçarão suas próprias rotas, alheios às determinações dos poderosos, libertos desses grilhões.

 

Nessa nova era, o poder da escolha é dado por nossas mentes.

 

 

 

Sobre um absurdo contemporâneo

 

 

Uma peculiaridade de nossa mente é o fato de podermos nos acostumar com QUALQUER coisa, até com as mais absurdas. Convivemos normalmente com inúmeros disparates. Um dos mais gritantes absurdos que compõem a nossa normalidade é a naturalidade com que os policiais costumam assassinar pessoas no Brasil. Trata-se, todos sabemos, de um costume natural e aceito por aqui, onde os policiais podem matar e o fazem sem parcimônia nem pudor.

 

 

Recentemente, uma reportagem do Fantástico mostrou dois policiais levando 3 garotos para matar em um matagal. Causou surpresa a denúncia, não o fato: dois dos rapazolas, de 14 e 15 anos, haviam cometido delitos, furtos em lojas, suponho, motivo suficiente para serem capturados e assassinados; o terceiro ficou olhando com marra, motivo para morrer também, embora tenha sido absolvido pelos policiais, posteriormente (era sobrinho de conhecida dos policiais).

 

Os policiais não se preocuparam com o testemunho do jovem liberado, não havia motivo para preocupação, a função de exterminadores exercida por eles é notória na região onde trabalham; os policiais municipais que capturaram e entregaram os garotos aos policiais, por exemplo, tinham consciência do destino que os meninos viriam a ter.

 

Estima-se uns 3.000 assassinatos cometidos anualmente por policiais na cidade do Rio de Janeiro, a maioria deles após torturas, outro evento natural em nossas terras.

 

Por aqui pensamos que esse genocídio seja natural e inevitável, fingimos acreditar ser assim em todo lugar. Acredito que tamanho grau de selvageria não ocorra em nenhum outro lugar do mundo, é provável que esse recorde nos garanta o título, a nós, brasileiros, de campeões mundiais de selvageria, honraria repugnante.

 

Temos muitos outros problemas no país; creio ser esse, no entanto, o mais premente, em virtude de sua gravidade. Acredito termos obrigação de acabar com esse genocídio absurdo. Basta de selvageria.

 

bottom of page