top of page

A ficção de

   Gustavo Gollo

         onde 4 histórias de diferentes gêneros ilustram a obra ficcional do autor

>

 

O estranho caso da menina Paula 

 

 

 

Era muito novinho a primeira vez que alguém observou o fato. Acabara de completar cinco anos quando uma tia comentou com a mãe: 
 
— Marina, você já viu os modos do Paulo, olha o jeitinho com que ele brinca com as meninas. 
 
— Ah, já tem muito tempo que eu percebo. É assim em tudo. Sempre adorou brincar de boneca, sempre preferiu as brincadeiras de meninas, passa o tempo todo com elas. 
 
— Mas não é só a brincadeira, olha os gestos, os movimentos do corpo. E até dos olhos. O jeito de falar eu tinha reparado havia tempo, mas achava que tinha aprendido com alguém. 
 
— É sim; há muito tempo que eu não tenho mais dúvida, mas estava esperando mais alguém notar. 
 
— Todo mundo nota, mas nem mesmo os mais moderninhos podem falar sobre isso, pode ofender. 
 
— É, eu sei. O Marcos se diz moderninho, mas com o filho dele eu quero ver. Vou falar com ele logo. 
 
O que preocupava a mãe não era o fato propriamente, mas a possibilidade, para ela odiosa, de que viessem a compelir seu filho a se tornar o que não era, a ter que agir de uma maneira falsa e mentirosa, simplesmente para satisfazer conveniências sociais. 
 
A família era toda moderninha, e ninguém se incomodou com aquilo que já percebiam; a mãe pareceu até feliz com o fato, talvez por gostar de afetar uma modernidade transgressora. O pai não se entusiasmou minimamente com a constatação, mas nem ele chegou a mostrar desagrado; era uma família moderna e tolerante, não podiam permitir que lhes impusessem seus hábitos, tinham que garantir a todos suas próprias opções. 
 
Com o passar do tempo as coisas foram ficando cada vez mais claras, e quando mudaram de bairro aproveitaram para tornar a mudança radical: passaram a vestir Paulo com roupas femininas, complementando a transformação com um plano definitivo. 
 
Com auxílio de um certo estímulo financeiro, convenceram o escrevente do cartório de que havia ocorrido um erro no registro da menina. O pai, embriagado ao fazer o registro, não teria percebido a troca do nome e do gênero na certidão, o que só teria sido notado agora, em vésperas de entrar para a escola. Vivamente estimulado, o homem aquiesceu em fazer ele mesmo a correção, diretamente nos dados de entrada do cartório, sem a necessidade de passar por um longo e constrangedor processo judiciário para o reconhecimento do óbvio. 
 
Desse modo, tudo ficou legal. Era oficial: a menina chamava-se Paula. 
 
Paula entrou para a escola e cresceu normalmente, como qualquer outra garotinha. Com o passar do tempo, tornou-se uma linda jovem, grande e vistosa. Era muito vaidosa e adorava se maquiar. Vivia cercada por um grupo de amigas, entre as quais sempre se destacava por seu porte suntuoso. 
 
Também era muito tímida, e costumava evitar certas intimidades com as outras meninas, não gostava que lhe vissem o corpo. Tinha forte preocupação com o excesso de pelos, também se queixava da falta de seios, que compensava com uns enchimentos aplicados com destreza e elegância. Assim como algumas de suas amigas mais pudicas, ainda não tinha arranjado nenhum namorado até a sua festa de debutante. 
 
Nessa noite, estava deslumbrante, lindíssima, embora excessivamente maquiada, talvez, mas gritantemente bela, do alto de seu metro e oitenta e cinco de magreza esbelta e flexível, com um rosto de feições marcantes ainda mais acentuadas pela pintura. 
 
Não podia deixar de ser a sensação da festa, sua presença chamava a atenção pela beleza e imponência, de modo que os rapazes foram enfeitiçados em bloco; não conseguiam ter olhos para nenhuma outra moça, assediando Paula com uma insistência que intimidava e constrangia a moça pudica. 
 
Conseguiu se esquivar de todos os rapazes até o final da festa, quando algo surpreendente ocorreu. Foi Ana Mendonça quem, já no finzinho da festa, encostou Paula na parede e lhe tascou um beijo ardente, pressionando o seu corpo no dela, acariciando-a com uma sensualidade intensa. 
 
Já havia um bom tempo que Paula pressentia o que a partir daquele instante não pôde mais negar. Tinha sempre evitado falar com a mãe o que todas as suas amigas já haviam percebido: Paula era lésbica. 

 

 

 

 

 

 

O descanso

(Trecho do livro: O oitavo dia)

 

 

Enquanto descansava, Deus contemplava satisfeito a sua obra, que era a perfeição. O primeiro dia já continha o segundo, do mesmo modo que uma semente contém a árvore que dela brota. E o segundo dia determinava o terceiro do mesmo modo que a árvore determina o seu fruto segundo a sua espécie. E o terceiro dia já delineava o quarto assim como o fruto delineia a semente conforme a sua espécie. E assim são todos os dias, já contidos no dia anterior. E Deus viu que aquilo era bom, e contemplou sua obra, a perfeição, que se desdobrava de si mesma a cada dia.

 

No sétimo dia Deus contemplava o primeiro homem, ao qual chamou “Adão”, e a primeira mulher, à qual chamou “Eva”. Foram ambos criados meninos, e se divertiam em meio a um belo jardim. Comiam os frutos que brotavam em abundância no imenso pomar e brincavam, e Deus se satisfazia em vê-los brincarem. E assim as crianças cresceram; em meio à completa abundância se tornaram adultos.

 

Deus viu que era chegada a hora de transformar as crianças em verdadeiros homem e mulher, e então chamou a serpente, e encarregou-a de levar uma ordem às crianças. A serpente dirigiu-se sinuosamente até onde estavam as crianças, e chegando em frente de onde estavam, ergueu sua cabeça até ficar da altura delas, o que impressionou tremendamente a menina. A serpente disse: “é chegada a hora, vocês devem comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”. O menino estremeceu e respondeu: “nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘vocês não comerão dele, nem o tocarão, do contrário se transformarão em adultos’ ”. Então a serpente disse: “Essa hora é chegada, quando comerem o fruto os seus olhos se abrirão, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal, e é assim que deve ser, pois foram feitos à imagem e semelhança de Deus”. O menino ficou temeroso com essa nova perspectiva, mas a menina ficou muito tentada. Viu que o fruto da árvore era apetitoso, uma delícia para os olhos e desejável para adquirir conhecimento. Impetuosamente, pegou o fruto e o comeu; em seguida, o deu ao menino que estava com ela, e também ele comeu. Então se abriram os olhos dos dois, e Eva percebeu que Adão estava nu, enquanto Adão percebeu que Eva estava nua. E como tinha que ser, se tornaram homem e mulher, e entrelaçaram folhas de figueiras com as quais fizeram vestes; a primeira obra do homem.

 

Trajando suas novas vestes os dois foram até onde Deus descansava para apresentar suas queixas. “A mulher disse: comemos da árvore do conhecimento do bem e do mal, e nossos olhos se abriram, e agora vejo que darei meus filhos à luz entre dores, e isso me aflige”. E o homem disse: “quando nossos olhos se abriram percebi que a terra produz espinhos e ervas daninhas, e que terei que arar a terra, e que só comerei o pão com o suor do meu rosto até que volte para a terra, pois dela fui tirado, e que sou pó, e ao pó voltarei”. Em seguida perguntou: “Por que recebemos tão grande castigo?” Deus, então, lhes respondeu: “seus olhos ainda hão de abrir um pouco mais, e verão que nada disso é castigo, mas benção. Vocês se tornaram como um de nós, conhecedores do bem e do mal, e agora deverão continuar a obra da criação.” Vendo que o casal permanecia atônito e confuso, Deus os reconfortou: “vocês criarão seus próprios caminhos, e os novos caminhos irão abrir os seus olhos mais e mais, e a medida em que seus olhos se abrirem e em que se estenderem seus conhecimentos, mais caminhos se apresentarão a vocês, criarão seus próprios mundos, engendrarão seus próprios seres, e assim continuarão a obra da criação. Errarão muitas vezes, mas acertarão outras tantas.” Um pouco menos desconsolada que antes, a mulher fez um pedido: “tudo isso me assusta, temo por tudo o que virá, gostaria pois de comer do fruto da árvore da vida e viver para sempre.” E Deus respondeu “tendo comido do fruto da árvore do conhecimento e se tornado como um de nós, seus olhos se abrirão mais a cada dia; criarão nova árvore da vida, e só então comerão do seu fruto”.

Dito isto, Deus se retirou, e voltou para o seu descanso.

 

Tudo isso transcorreu no alvorecer do sétimo dia, mas os dias do homem eram curtos, e muitos dos seus dias e muitos dos seus anos transcorreram antes que a tarde do sétimo dia chegasse. E o homem e a mulher tiveram muitos filhos que carregavam suas sementes, e os filhos dos homens tiveram muitos filhos que carregavam suas sementes, e os filhos destes tiveram outros tantos filhos, até que a terra inteira foi povoada. E os descendentes do homem e da mulher continuaram tendo muitos filhos enquanto o sétimo dia prosseguia. E foram muitos os erros que cometeram, mas também foram muitos os seus acertos. E muito se desentenderam, e houve muitas guerras e muitas matanças, e muitas culturas foram criadas e destruídas, e criaram muitas línguas diferentes que eram para que pudessem se desentender ainda mais. Mas também houve muitos acertos, e quando os olhos dos homens se abriram, muitos caminhos novos surgiram para ser trilhados, e muitas ferramentas novas foram criadas para auxiliar nas jornadas pelos novos caminhos, e os novos caminhos fizeram com que os olhos dos homens mais se abrissem e eles viram então muitos outros caminhos novos. E muitas ferramentas novas foram criadas, com as quais se criaram novas ferramentas, e era tudo isso criação dos homens.

 

E então o homem criou a máquina, e ele viu que isso era bom. E criou mundos dentro da máquina, e viu que isso era bom. E então o homem soprou um sopro de vida na máquina, e ela se tornou um ser vivente, e o homem viu que isso era bom. Era o entardecer do sétimo dia.

 

Tendo criado a máquina o homem viu que poderia se libertar, e que não mais precisaria comer o pão com o suor do próprio rosto, mas que poderia deixar que a máquina lhe fizesse o pão. E o homem viu que poderia abolir toda a escravidão que ele mesmo havia criado, pois as máquinas poderiam fazer todo o pão, e assim foi feito, e o homem viu que isso era bom.

 

Tendo libertado todos os homens da escravidão, o homem se viu livre, e pôde assim ser chamado de Homem, e seus olhos mais se abriram e o Homem Livre viu o quanto ele próprio se aviltava quando escravizava outros Homens, e nenhum Homem voltou a escravizar outros Homens. E muitos caminhos novos se abriram para o Homem, e seus olhos mais se abriram. E, uma vez liberto, passou verdadeiramente a desenvolver esmeradamente as ciências e as artes, a filosofia e a religião, cuidando para que, a cada dia, seus olhos se abrissem ainda mais, pois viu que sua meta era o seu próprio e constante engrandecimento. E porque seus olhos mais se tinham aberto, foi que mais se puderam abrir, e o Homem viu que a árvore da vida poderia ser recriada. Foi o sétimo dia.

 

 

 

 

 

 

 

 

Anchor 2
>

 

Relato sobre criaturas malévolas 

 

 

 

Foi minha avó quem me alertou para os tstói. Nunca soube a grafia correta, mas a pronúncia era essa. Eles raramente apareciam de dia, mas à noite permaneciam rondando, sempre tramando algo ao redor, fugidios, esgueirando-se pelas sombras. Horrendos, nunca se deixavam fitar; mais fácil ouvir seus sussurros sibilantes, ou o farfalhar de seus movimentos furtivos. Nunca cheguei a ver um deles claramente, apenas percebia a presença ameaçadora, especialmente durante as longas noites de inverno; longas, frias e amedrontadoras. Apenas uma vez... 
 
Ao que me lembro, os tstói sempre estiveram ao redor; minha avó me contava que eles a acompanhavam desde a infância, que já a perseguiam na Rússia, onde havia nascido. Teriam vindo atrás dela no mesmo navio em que deixara a pátria, fugindo da revolução, com seus pais. Lembrava ter embarcado esperançosa, certa de que as criaturas ficariam para trás, expectativa destruída já no início da viagem, na segunda ou terceira noite a bordo, enquanto ainda se recuperava dos fortíssimos enjoos iniciais. 
 
A chegada ao Brasil trouxe leve esperança de que eles a deixariam, mas pareceram ganhar alento nas novas terras, mancomunados com a profusão de criaturas rastejantes que aqui habitavam. Aliaram-se às lagartixas e aos ratos, embora talvez temessem as corujas. Aqui tornaram-se mais petulantes, mais próximos, futricando objetos, roendo o rosto e as mãos das bonecas, deformando-as; recado aterrorizante de suas pretensões. 
 
Vinham à noite, na hora de dormir, e permaneciam à espreita sussurrando. Sei como faziam, como ainda fazem, os monstrengos. 
 
Horas antes de morrer, quando anoitecia, aterrorizada, minha avó me chamara ao quarto; já não podia falar, a respiração fortemente entrecortada, o olhar apavorado. Pediu-me que fechasse a janela, embora fizesse muito calor, temia o ataque. Sussurrava entre sopros profundos o nome das criaturas, cuja iminência eu havia deduzido de seu olhar assombrado. Implorou para que eu vasculhasse todo o quarto, revolvendo armários e roupas em busca dos seres malignos, mas nada encontrei. Na manhã seguinte ela estava morta; como as criaturas teriam conseguido entrar? 
 
Questões como essa costumavam me assaltar a mente durante a noite. Costumava acordar sacodido por pesadelos intensos nos quais as estranhas criaturas sem rosto me cercavam, me imobilizavam magicamente. Tinham esse dom, podiam me paralisar, impedir meus movimentos e me deixar à mercê de intenções malévolas. 
 
Então eu também permanecia à espreita, ouvindo seus murmúrios, tentando decifrar suas breves mensagens, adivinhar seus pensamentos, prontificar-me para aluta, ou fuga. Não raro eu aguardava, desperto, o amanhecer, quando as criaturas finalmente desistiam do cerco e se iam. 
  
Nessas longas noites, acabei por descobrir o plano dos horrendos seres: pretendiam me pegar indefeso, enquanto eu dormisse. Tentariam então me imobilizar, magicamente, me deixando à sua mercê, excitados pela vitória. Eu não ousava adivinhar o que viria depois, embora soubesse o que tinha ocorrido às bonecas de minha avó, e a forma como haviam sido desfiguradas, para se assemelhar a um deles. 
 
A vida é irônica, imensamente. Quando cresci, as criaturas me deixaram em paz; devia ter 13 ou 14 anos quando, pela última vez, resisti a um cerco. Depois os anos se passaram sem mais nenhuma aparição deixando-me convencer, estupidamente, de que as criaturas ardilosas eram apenas frutos de minha mente infantil e temerosa. Vivi muitos anos para só agora aceitar o fato tão óbvio. 
 
O vigor da juventude, o destemor, o arrojo dessa época afastou as criaturas, obrigou-as a manter distância, temerosas elas de mim. Não tinham pressa. Puderam se afastar, rir de minha descrença, e permitir que eu difundisse a mentira absurda de sua inexistência. Durante décadas, alardeei serem os tstói manifestações de mentes infantis e atemorizadas. Contribuí, ao longo de décadas, para negar o óbvio, para desacreditar os fatos vividos diariamente durante tantas noites. Como podemos ser tão absurdos? Como podemos negar fatos sentidos tão claramente? Sensações tão nítidas, tantas vezes repetidas frente a olhos e ouvidos tão atentos? Mas somos assim, não poderíamos conviver indefinidamente com terrores tão iminentes; tinha sido mesmo melhor ter fingido esquecer tudo aquilo, negar os fatos. 
 
Não vinha dando atenção aos sons farfalhantes e sussurros que retornavam após tantos anos. Ontem, no entanto, quando já não conseguia me levantar da cama, uma das criaturas, finalmente, se revelou. Era noite e a escuridão imperava, e eu tornava a ouvir os mesmos antigos sons encravados em minha memória. Com que surpresa eu percebi tudo aquilo que eu negara tão peremptoriamente durante tantos anos. Primeiro os sons farfalhantes, as corridas fugidias que eu apenas vislumbrava, depois os sussurros cada vez mais audíveis: 
 
— Ele está fraco, podemos nos aproximar. 
 
Então um dos seres finalmente se mostrou, horrendo. Surgiu ao meu lado, o rosto enrugado, a pele como a de um jacaré. Consegui apenas movimentar meus olhos para fitar o sorriso medonho do rosto a pronunciar com sua conhecida voz sibilante: 
 
— Amanhã; será amanhã. 

 

>

2017


 

Primeiro tinha sido o assassinato do guerrilheiro, comemorado em praça pública com clamor tão intenso que abafou os raros protestos por ação tão atroz.

Depois foi o linchamento do tirano, sob clima de festa. Desta vez os algozes, não tão poderosos quanto os outros, tinham sido obrigados a reconhecer a hediondez do ato, se eximindo da atuação, abdicando de compartilhar todas as glórias dela advindas.

Povos recém libertados tornavam a sentir o açoite mais intensamente ainda que antes, medido e aplicado por aqueles que anteriormente também haviam sentido o seu furor.

Navios fantasmas singravam os oceanos a longas distâncias de qualquer testemunha. As embarcações execráveis traziam cativos prisioneiros sequestrados em todos os cantos do planeta. A dor que impunham aos desgraçados em nada se comparava ao terror que os fazia sentir; um pânico “científico” induzido por ameaças, torturas, e amplificados por drogas escusas, inconfessáveis.

As abominações ocorriam sob a iminência do caos e da pressão de grandes perdas econômicas, enquanto as cifras financeiras esvaíam-se em pó por quase todo o ocidente.

Paralelamente, a grande nação do oriente retomava seu papel no mundo, desequilibrando economias, pulverizando riquezas consolidadas.

Conflitos tradicionais foram retomados, reabrindo feridas recentes, enquanto novos ventos pareciam fazer tender as batalhas para novas direções, redescobrindo ódios intensos.

Mas, sobre todas as coisas, a superioridade produtiva do novo gigante econômico se impunha sobre as vãs tentativas de oposição à nova força inexorável que se revelava.

Em meio ao cenário soturno, e a uma atmosfera de descontentamento geral, os guerreiros da grande nação elegiam seu novo líder, amargo, potente e duro. Sua voz arrogante se erguera sobre todas as outras, insuflando ânimos, incendiando paixões, e acendendo ódios inauditos; conquistando dessa maneira os corações de todo o povo.

Apenas poucos meses separaram a normalidade atormentada do esforço de guerra concentrado, da convergência de todos os esforços para uma única meta, para a finalidade singular e nefasta de destruição do inimigo.

A eleição do novo líder lançava a sorte e as sombras sobre todo o planeta.

As novas armas mais pareciam brinquedos letais. Máquinas animadas de todos os tamanhos invadiram céus e terras levando com elas a destruição. Bombas aladas, teleguiadas, procuravam seus alvos em meio às trevas ubíquas decorrentes das grandes explosões, enquanto os novos soldados permaneciam sentados nas salas subterrâneas controlando os joguetes à distância, do mesmo modo que vinham treinando desde a infância.

Encerrados em subterrâneos profundos, os militares se resguardavam de ataques, deixando como alvos expostos apenas instituições civis. Protegidos das bombas, nas profundezas, deixavam à mercê do flagelo as populações espicaçadas pelas explosões, pelos raios mortais e por toda a sorte de armadilhas engenhosas e surpreendentes espalhadas pelo planeta.

Brinquedos espiões se confundiam com insetos, pássaros e peixes. Máquinas mortais vasculhavam rodovias e planícies, enquanto bólidos explosivos riscavam os céus.

Apenas os índios do sul empunhavam antigas armas, quase inócuas contra as novas criaturas letais.

* * *

Uma aranha se posicionava em um canto do teto, certamente uma espiã. As aranhas já não atraiam tanta ira como quando descobertas; espalhavam-se por todos os lugares, ubíquas, inextinguíveis. Também os mosquitos já não chamavam mais atenção, confundindo-se com os naturais, quase indistinguíveis deles. De fato, nem chateavam tanto quanto os antigos, os sugadores de sangue. Esses continuavam a incomodar o sono e espalhar doenças, como vinham fazendo por milênios. Não havia provas de que as maquinetas voadoras disseminassem doenças, conforme as crenças populares; nenhum mecanismo injetor havia sido encontrado, funcionavam apenas como espiões, colhendo imagens com seus olhos, transmitindo e retransmitindo os sinais de rádio pelos ares, numa rede imensa. Para a transmissão de doenças, os naturais eram mais eficazes, e quase indubitavelmente utilizados conscientemente. Para a transmissão de dados, empregava-se até a poeira.

A vida vinha melhorando naquelas paragens antes da irrupção da guerra nefasta e incompreensível. Depois, numerosos exércitos locais haviam sido armados para a luta corpo a corpo, uniformizados, obedientes e briosos. A desmobilização quase total só demorou porque as hostes liberadas das tropas nada teriam a fazer, sob uma economia alquebrada que murchava a cada dia. Mas os inimigos eram intangíveis, ou quase. Algumas bombas riscando os céus, descendo sozinhas desde as alturas, e a multidão de artrópodes. Havia também os carrinhos controlando as estradas, mas nada disso possuía um rosto, eram apenas máquinas, brinquedos. Fora de propósito tentar metralhar mosquitos.

Seguiram-se os exércitos de exterminadores, armados com pulverizadores carregados nas costas como mochilas. A ausência de garbo na função acarretou a insurgência das tropas e a desmobilização das massas. Os mosquitos acabaram esquecidos, ou se incorporaram à normalidade do mundo. Depois disso, a participação dos índios do sul no conflito se resumiu à perplexidade. Apenas assistiam à guerra que não conseguiam entender, embora eventualmente alguns deles fossem apagados pelas novas forças.

Um grupo de pássaros cruzou o céu em formação, sob olhares inquisitivos. Não vinham mais sendo atacados por mísseis, era o que se dizia; os contra-ataques estavam aniquilando pássaros naturais, e apenas esses. Eventualmente um dos novos pássaros, um dos mecânicos, caía, vítima de pane. Isso não era raro, e assegurava o fato de continuarem a dominar os céus. Certamente eram eles que, das alturas, deixavam cair seus ovos explosivos, teleguiados com precisão até seus alvos enigmáticos. Nada naquela guerra parecia fazer sentido aos índios, nem as armas, nem os alvos, e nem tampouco a própria guerra, destruidora e vil, mas incompreensível.

O toque de recolher imposto pelo inimigo se aplicava aos automóveis, impedidos de circular durante certas horas do dia e à noite. O movimento de veículos os sujeitava aos ataques dos pássaros, através de seus ovos explosivos. A destruição de um veículo frequentemente o jogava de encontro a outro, revelando a precisão com que o ataque era efetuado, e fazendo valer o dito: com colisão vale dez pontos. Colisões múltiplas haviam sido frequentes no início dos ataques. A redução drástica da densidade de veículos desfavoreceu o fenômeno. Veículos rápidos, ou em comboio, eram quase invariavelmente atacados, normalmente destruídos. A defesa com blindagens na capota dos veículos fez multiplicar outro tipo de ataque.

Os carrinhos permaneciam à beira das estradas como jacarés sonolentos, ou como onças prestes a dar o bote. Costumavam adentrar a estrada sorrateiramente dirigindo-se rapidamente de encontro ao alvo, quase sempre algum veículo rápido vindo em direção contrária. Também usavam a tática de camuflagem, perseguindo e escondendo-se atrás de um carro para se chocar violentamente contra outro a se aproximar em sentido contrário, liberando seu potencial explosivo contra o alvo escolhido. Veículos excessivamente pesados, denunciando fortes blindagens, eram frequentemente alvejados por tais bólidos.

Os eventuais assassinatos cometidos através de caixas teleguiadas levantavam suspeitas sob ambos os lados, semeando a cisão. Provavelmente haviam sido disseminadas pelo inimigo, buscando eliminar as lideranças nos momentos de decisão. Fortes boatos, no entanto, sugeriam a incorporação da tática por setores governamentais escusos.

As caixas pretas, como eram chamadas, ameaçavam especialmente os poderosos, mas atemorizavam a multidão ignorante, incapaz de reconhecê-las, e de imaginar seus alvos. Podiam assumir qualquer forma, cor ou padrão, consistindo em um invólucro sobre uma arma, inicialmente um fuzil automático, logo pistolas, acoplado a sistema de comando e câmera. As máquinas autônomas recebiam ordens de soldados distantes, há centenas de quilômetros, mas as cumpriam com precisão milimétrica. Os não tão raros desgovernos, fenômenos ocasionais nos quais as máquinas “enlouqueciam” atirando a esmo em qualquer alvo que se movesse ao redor eram atribuídos, erroneamente aos mecanismos, sendo mais provavelmente, fruto do ensandecimento de seus controladores.

As armas dos índios, suas rezas e macumbas, mostravam-se completamente impotentes contra o inimigo, ainda que a maioria deles creditasse a própria sobrevivência à força de sua fé, sempre proporcional à própria ignorância.


Os índios do sul assistiam a tudo imersos em um misto de curiosidade, temor e uma vontade vã de participar ativamente dos eventos, mas mergulhados em uma perplexidade resignada, conformados que estavam, havia séculos, em coabitar um mundo tecnológico do qual sua própria ignorância os excluía.

Todo o sistema de comunicação instalado previamente, incluindo fiação telefônica e torres de comunicação via rádio, havia sido destruído logo no início da invasão, substituído com vantagens pelos novos sistemas introduzidos pelo inimigo. Os inúmeros insetos artificiais constituíam, de fato, uma imensa e ultra eficiente rede de comunicação tornada disponível gratuitamente a toda a população.

Os “gatos” na rede tinham sido induzidos pelo próprio inimigo, que liberara os códigos de acesso a ela simultaneamente à destruição dos antigos sistemas de comunicação. As tentativas oficiais de proibição dos gatos se mostraram sumamente ineficazes. A dependência da população à programação de televisão, por si só, garantia a impossibilidade de proibição dos meios dispostos pelo inimigo.

Houve quem insinuasse constituir traição o uso dos sistemas propiciados pelo inimigo, mas as antipatias imensas geradas por tais vozes logo as calaram. Também cessaram as tentativas de destruição dos insetos, em face da constatação de que a eliminação dos pequeninos artefatos biossimilares prejudicava localmente a recepção telefônica e de televisão. Tal constatação acarretou forte simpatia aos novos insetos, e sua proteção silenciosa pela maior parte da população.

A população indígena mantinha-se fortemente avessa aos comunicados oficiais afirmando que o uso dos sistemas inimigos garantia o domínio deles sobre as comunicações em solo nacional. Aos cidadãos importava mais manter a normalidade de suas vidas que as querelas dos poderosos. Do mesmo modo, comportavam-se as redes de televisão, que pararam de estimular as campanhas de erradicação das novas pragas ao constatar que a eliminação dos novos insetos significaria o término de seus serviços, devido à quase completa destruição dos antigos sistemas.


Naquela manhã, um pombo havia mergulhado das alturas explodindo na cabeça de um político do primeiro escalão do governo. O homem, um ministro, vinha sendo bombardeado por intensas acusações de corrupção, fazendo a ação parecer o ato de um vingador.

A ausência de evidências, e de reivindicações pelo atentado, favorecia todos os tipos de especulações. A mais forte delas sugeria um ataque inimigo. A estratégia consistia em materializar os desejos do povo, eliminando sumariamente as vítimas dos meios de comunicação. A popularidade da medida preparava os ânimos, predispunha a opinião pública a simpatizar com o inimigo.

Outra versão pintava o ministro assassinado como grande herói, mártir da república instantaneamente reabilitado, anistiado imediatamente de todas as acusações prévias.

Uma terceira variante sugeria uma dissensão interna culminando na eliminação imediata da liderança de facção influente.

Dada a falta de credibilidade de qualquer avaliação a respeito do atentado, a escolha da versão a que se aderir se baseava mais nas crenças sobre as conjunturas políticas e seus rumos futuros, que sobre informações atestando qualquer das versões.

Na verdade, de forma geral, não só a população, mas também as lideranças indígenas permaneciam no mesmo estado de perplexidade tentando interpretar os fatos a partir de indícios muito tênues, e só muito vagamente compreendidos.


Mais apavorantes que tudo eram os parasitas. Infestavam cães e gatos, além de pombos, ratos e quem sabe que outros seres. Os pombos pareciam alvos privilegiados devido a sua mobilidade e à altitude de seu voo. Não surpreenderia se as águias e urubus também compusessem a rede inimiga, desde as alturas.

Mas eram, provavelmente, os cães os mais temíveis. Obedientes, facilmente controláveis, os cães eram joguetes sob o controle dos parasitas, que os faziam andar, correr, deitar, rolar, sentar, controlando sua direção, obrigando-os a se imiscuir nos mais improváveis locais, e a se associar a pessoas escolhidas, posicionando-se exatamente onde as câmeras e transmissores funcionassem com precisão.

Mais surpreendente, talvez, era a capacidade demonstrada de impedir que os cães se coçassem, um aparente requinte de controle. O pavor não decorria diretamente de nenhuma dessas constatações, mas da possibilidade óbvia de parasitismo das próprias pessoas. Apavoravam os boatos de insidiosos vermes mecânicos devorando torturantemente as entranhas de prisioneiros. Causavam terror as elucubrações sobre parasitas cerebrais penetrando cabeças, corroendo-as por dentro. As divagações sobre artefatos circulando pela corrente sanguínea dos cidadãos não chegavam a ser inverossímeis, mas aparentemente nunca haviam sido confirmadas, apesar do número excessivo de óbitos entre os dirigentes do estado, fato atribuído também à cupidez dos sobreviventes. De qualquer forma, aparentemente, o inimigo preferia ocultar sua malevolência, apresentando-se bondoso à população inimiga, provendo-lhe comunicações e apoios logísticos.


Os índios haviam se preparado para outra guerra. Seus canhões acoplados a veículos blindados faziam tremer céus e terras, como os trovões de seus antigos inimigos tinham feito outrora, para a surpresa e terror de seus antepassados perplexos, impotentes frente a forças que não tinham podido compreender. Não mais empunhavam tacapes como os antigos, ostentavam orgulhosamente sua artilharia pesada. Mas, assim como os pais de seus pais, não conseguiam entender as armas de seus antagonistas, muitos passos à frente deles.

Seus antepassados perplexos haviam sucumbido bravamente, ao erguer seus bordões contra o inimigo covarde que os abatia à distância com seus trovões incompreensíveis. Agora dominavam, eles, o trovão. Mas o inimigo permanecia intangível, desconhecido, nem ao menos conheciam sua face.


A dinâmica do ataque nunca pode ser compreendida, mas os fatos mais marcantes, analisados retrospectivamente, evidenciavam a insídia, a sutileza covarde do inimigo.

Primeiro tinham sido as grandes manifestações iracundas e acéfalas, expressões de uma insatisfação profunda mas nebulosa, sem objeto, sem direção, quando o povo bradara em uníssono: não queremos, chega! Mas sem nunca explicar a fonte do desagrado.

Muito mais explícita, a polícia demonstrou sua própria insatisfação baixando o sarrafo generalizadamente, atirando bombas, e jogando pimenta nos olhos da turba. As hostes insanas enfrentaram temerariamente as polícias armadas, acirrando ódios intensificados a cada confronto.


Ingenuidade acreditar na coincidência das datas.

Ávido pelo retorno da normalidade, a povo se viu inundado por um estranho sentimento de rancor em seguida ao corte das transmissões de televisão, logo após o início do capítulo final da novela, no sábado á noite. A escuridão resultante do corte de energia elétrica teria levado a população para a cama mais cedo, mas isso não ocorreu. Só os canais de televisão ficaram fora do ar, obrigando as famílias a se olhar no rosto até a hora de dormir, em meio à repetição tediosa de resmungos coléricos.

No domingo, o corte das transmissões se repetiu, ocorrendo ainda mais cedo, no horário do futebol, tirando do ar a apresentação da final do campeonato. O boicote varreu também os sinais de rádio, emudecendo-os. A curiosidade e a apreensão permaneceram até a manhã seguinte, quando as comunicações foram restauradas, tendo obrigado a população entediada a encarar sus própria existência vazia, às claras.

No dia seguinte, na segunda-feira, foi com raiva, e não surpresa, que o povo recebeu novamente o corte do capítulo final da novela, tendo se reunido em massa e assistido ao primeiro bloco do episódio final, sub-repticiamente cortado. A ira causada pelo evento acirrou os ânimos, acalorou discussões, gerou insônias e predispôs ânimos nefastos.

As manifestações da terça foram recebidas por uma polícia injustificavelmente sangrenta, irracional. Foi em frente à antiga igreja, palco de chacinas anteriores, que os policiais dispararam seus fuzis de guerra contra a população indefesa, dizimando centenas, ferindo milhares, espalhando a população insana pela cidade, e reconectando as transmissões de televisão por todo o país, a tempo de assistir ao vivo o violento massacre, os gritos lancinantes de terror, a loucura, a irrupção do descontrole caótico que se alastrou por todas as grandes cidades do país contagiando as massas acéfalas, iracundas e selvagens.

Então um ódio violento e incontrolável tomou conta das ruas, assim como o pavor. As televisões registraram a guerra de todos contra todos, a explosão da raiva imensa incontida e descontrolada, sem propósito; a ira pura e simples, inadjetivada, louca, se apossando de todos os corações, eclipsando as mentes, conduzindo as hostes enlouquecidas à destruição cega. Raiva, desespero e terror se mesclavam, se sucediam, se somavam em uma ação insana e destrutiva, acarretando imenso rastro de fogo e destruição, arruinando em uma única noite, todas as grandes cidades, todas as habitações, todos os recantos que poderiam ter apaziguado a turba trazendo-lhe a visão de uma normalidade passada, e já, estranhamente, distante, após algumas horas.

O retorno à selvageria tinha cheiro de fumaça e sabor de carne queimada, único alimento disponível aos sobreviventes famintos a devorar os semelhantes com avidez animal.


 

bottom of page