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CIÊNCIA, UMA ILUSTRAÇÃO



O grande momento da história, por Gustavo Gollo

Publicado em 20 de novembro de 2017, 8:59


Qual terá sido o maior momento de toda a história da humanidade? A resposta terá, seguramente, um tom muito pessoal, havendo muitas escolhas possíveis. Tenho a minha. Trata-se de um momento de grande otimismo, um instante que permitiu à humanidade sonhar como nunca, anteriormente.

Em meu tempo de escola, a palavra “história” significava “história do poder”. Todo o estudo de história se concentrava nas lutas pelo poder, revelando uma obsessão da época. Espero, sem muita convicção, que isso tenha mudado. Penso que damos excessiva importância às lamacentas personagens que protagonizam as lutas pelo poder político (creio haver uma distorção patológica nesse fato). Outros enredos geram tramas, a meu gosto, mais interessantes e dignas de atenção que essas.

Durante milênios, a humanidade tem buscado conhecimento através de modos muito diversos. Por um longo tempo, em grande parte do mundo, a maneira usual de adquirir conhecimento consistia em rezar, pedindo a Deus que iluminasse o pecador, revelando a ele a resposta para sua busca.

O aparente absurdo tem lá sua lógica. Supondo o mundo uma obra de um Criador sumamente sábio e poderoso, nada mais natural que perguntar a Ele quais teriam sido os seus desígnios ao criar qualquer parte de sua imensa obra. Só Ele seria capaz de revelar o que se passava em sua mente ao engendrar qualquer de seus numerosos milagres.


As palavras acima parecem se referir a um passado muito remoto, a uma outra era, muito distante da nossa. Creio não fazer tanto tempo que abandonamos uma maneira análoga de ver as coisas, e que tal mudança se deveu ao surgimento de um novo modo de conhecimento: passamos a acreditar na ciência.

Em 1665, Newton construiu o cálculo diferencial, em 1687 publicou sua grande obra, os Principia, incluindo a lei da gravitação universal e os princípios da mecânica.

Newton estava construindo os conceitos para compreender o movimento. A taxa de variação, por exemplo, o conceito fundamental do cálculo, foi aperfeiçoado ou inventado por ele e utilizado como ferramenta para definir velocidade e aceleração, duas grandezas básicas para a compreensão do movimento, e da mecânica. Ou seja, Newton precisou criar os instrumentos conceituais com os quais pôde inventar os conceitos que permitiram sua formulação da mecânica.

A ciência de Newton acabou se tornando uma das mais poderosas ferramentas conceituais já construídas, mas, para isso, desenvolvimentos subsequentes, como a Mecânica celeste, de Laplace, apresentada mais de 100 anos depois, entre 1799 e 1825, tiveram um papel fundamental. A formulação de Laplace consistiu em um poderosíssimo instrumento preditivo.


A mecânica celeste consiste simplesmente em uma aplicação da física Newtoniana aos astros. Ela permitia prever precisamente o movimento dos planetas, um assombro. Parecia que Newton e Laplace haviam perscrutado a mente de Deus, descobrindo seus desígnios. Seus cálculos permitiam prever com exatidão cada uma das alterações ocorridas no céu. Não só a Lua e o Sol puderam ser monitorados, acompanhados passo a passo em suas previsíveis jornadas pelos céus, mas também os planetas: Mercúrio, Vênus e Marte, Júpiter, Saturno e Urano, e até os cometas, seres que eventualmente invadiam os céus. Era o alvorecer da ciência, uma nova forma de conhecimento.


Após alguns anos, no entanto, certo fato inusitado acabou ocorrendo: uma anomalia. De algum modo, Urano abandonou a órbita prevista, insurgindo-se contra as previsões Laplaceanas. Refeitas as observações, refeitos os cálculos, não havia dúvidas, o planeta insistia em rebelar-se, fugindo da órbita que os cálculos de Laplace tentavam lhe impor.


Bem, não se pode ter tudo. Havia que se resignar com essa mácula, esse erro. A teoria científica, afinal, descrevia com precisão o movimento de todos os outros astros, de modo que essa única imprecisão deveria ser perdoada. O equívoco revelava apenas que a teoria, excelente em tudo o mais, não era perfeita. Nada mais natural para uma idealização humana, afinal.


Não! Argumentou Le Verrier, um físico francês: a teoria está correta e Urano se desloca exatamente como a teoria da gravitação prevê. Deve haver, no entanto, um planeta desconhecido perturbando sua órbita e induzindo-o à movimentação anômala percebida. Confiante em sua crença na ciência, Leverriére tratou de efetuar os cálculos, de refazer as mesmas hipóteses, mas acrescidas da suposição da existência de um planeta desconhecido interferindo no movimento. Havia que descobrir, com base na anomalia descrita, a posição do planeta oculto, e assim foi feito.

Realizados os cálculos, coube ao teórico, que nenhum interesse tinha por telescópios nem por observações celestes, enviar uma carta comunicando a Galle, um astrônomo, o local no céu, onde ele deveria procurar o planeta desconhecido, nunca visto antes. Na mesma noite, Galle descobriu, no local indicado pelo teórico, um astro que não constava nas cartas celestes! O planeta assim descoberto, em bases puramente teóricas, foi batizado Netuno.


Façamos uma pausa para usufruir esse momento, para tentar captar um pouco do significado de tal portento, quando a ciência, esse novo modo de ver o mundo, convertia sua primeira derrota no seu mais extraordinário feito, até então. Note que, de algum modo, os deslocamentos dos outros planetas já eram conhecidos previamente quando foram estabelecidos os cálculos. Mas a nova descoberta não constituía uma mera continuação do conhecimento prévio, mas a descoberta de um planeta desconhecido realizada através de cálculos, através de uma predição teórica!


Mais que tudo, o assombro vinha exatamente reverter o momento de dúvida, o instante em que a ciência se via passível de ataque, tornando a aparente derrota em seu mais estrondoso feito. Tal virada de jogo ocorreu em 1846. Comovente.


Terá havido momento de maior otimismo em toda a história? Em que outro instante a humanidade teria tido tanta confiança em seu próprio poder, em sua própria sabedoria?


A queda


A grandiosidade do momento contagiou todo o pensamento do século XIX, tendo sido essa, naturalmente, uma época de enorme otimismo, pautada por um vasto conjunto de vertentes positivistas, todas elas enlaçadas orgulhosamente à ciência, irmanadas na convicção da infalibilidade desse novo modo de conhecimento.


Sucederam-se, em seguida, provas científicas de fenômenos surpreendentes, frequentemente espantosos, como os estudos sobre a eletricidade, uma estranha força recém-descoberta. Tais demonstrações demoliam qualquer desconfiança quanto às certezas científicas, ou, mais que isso, encantavam as mentes com seus resultados mirabolantes. Que efeito terá tido, sobre os viventes na virada para o século XX, a visão da iluminação elétrica, da transformação mágica, ou melhor, científica, das noites em dias, com o auxílio de poderosíssimas lâmpadas de 60 watts?!

Tesla exibindo-se entre aterrorizantes arcos voltaicos

Em 1934, Karl Popper surpreendeu os neopositivistas, uma vertente filosófica extremamente influente, na época, revivendo velhas críticas devidas a um cético pré-científico, David Hume. Talvez o maior mérito de Popper tenha sido a coragem, o que não é pouco. De qualquer modo, o filósofo ousou duvidar da demonstrabilidade científica quando tudo parecia confirmá-la.


É bem verdade que a relatividade, proposta por Einstein em 1905, havia demolido radicalmente a física newtoniana, mas tal fato era compreendido por pouquíssimos e amenizado por todos. Uma teoria tão err… esdrúxula e incompreensível não poderia ofuscar a iluminação elétrica, muito mais clara que ela.


Deve ter sido a mecânica quântica, recém-elaborada, que induziu a desconfiança na ciência.


Indução

Apesar do enorme sucesso e de imensa difusão, nenhuma das vertentes positivistas tinha conseguido nada além de uma justificativa capenga para a veracidade científica: a indução.

A indução empírica consiste em um raciocínio muito simples: observa-se um fato. Em seguida, observa-se a repetição do fato, depois outra… após algumas repetições, propõe-se a hipótese indutiva, provada, eventualmente, pela sucessão de observações que confirmam a hipótese.


Assim, observa-se um cisne e percebe-se que ele é branco. Um segundo cisne, e também é branco. Tendo-se observado certo número de cisnes, todos eles brancos, infere-se a hipótese indutiva: todos os cisnes são brancos, que acaba provada por observações subsequentes.

Era essa a melhor explicação para a infalibilidade científica. Decepcionante.

Quase um século depois, sinto-me perplexo com a candura dessa época. A indução é obviamente um método capenga e injustificado, mas, pior que isso: de meu ponto de vista, parece difícil discernir relação entre ciência e indução; vejamos.


Newton teve que idealizar relações como a taxa de variação entre duas grandezas. Partindo desse conceito, inventado por ele, conseguiu definir o conceito de velocidade e o de aceleração. Definiu também a força e a energia, grandezas já vislumbradas por outros, mas definidas anteriormente de maneiras nebulosas.

Newton, então relacionou tais inventos, pressupondo a inércia, a atração entre as massas, e arbitrariedades do gênero, construindo, assim, sua mecânica, uma criação altamente elaborada baseada em uma conceituação nova e altamente revolucionária.


Atente: foi necessário criar, construir, inventar todos esses conceitos e depois reuni-los em uma teoria que relacionava fatos supostamente desconexos.


De que modo um princípio de indução poderia ter auxiliado na construção dos conceitos idealizados por Newton? Como um método indutivo pode auxiliar tal tarefa? As mesmas perguntas valem para todas as grandes realizações científicas.


Penso que a física se manifestou na mente de Newton de uma maneira muito similar à que acontece nas mentes de ficcionistas, uma espécie de delírio controlado. Eu apostaria que as primeiras versões foram descartadas e aprimoradas para permitir o encaixe entre os diversos conceitos propostos. Sucessivos testes mentais permitiram o aprimoramento dos conceitos e da teoria, essa estranha ficção testável proposta por Newton. Primeiro delire, depois observe e teste. Penso, seguindo Popper, que seja essa a diferença fundamental entre teorias científicas e ficções, as primeiras devem ser testadas.


Desse modo, a importância dada por tantos a um suposto método indutivo que, a meu ver, nenhuma relação tem com a ciência, causa-me perplexidade. Surpreendentemente, o mito da observação persiste até hoje. Não é raro encontrar pessoas nos círculos científicos, ainda hoje, repetindo a ladainha indutiva da necessidade de observações precedendo as generalizações teóricas.


Posteriormente, Einstein alterou TODA a conceituação newtoniana, redefinindo todos os conceitos físicos, repetindo os mesmos passos que Newton, sem qualquer sugestão do uso de metodologias indutivas, para isso. Em quê a indução poderia ter ajudado Einstein?


Sem muito a oferecer em troca de sua denúncia, Popper nos legou apenas a descrença na infalibilidade científica, concluindo em sua “Lógica da investigação científica”:

“O velho ideal científico de Episteme – do conhecimento absolutamente certo, demonstrável – revelou-se um “ídolo”. A exigência de objetividade científica torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre.”


Acredito que as ideias de Popper tenham sido recebidas com uma aceitação lacônica, mas, que opção restaria?

A redenção


Foi Popper, creio, o primeiro a propor a metáfora da ciência como um jogo.

Penso que tal sugestão deve ser, de fato, levada a sério, e que a ciência deva ser vista, literalmente, como um jogo de enigmas, um jogo que consiste na elaboração de perguntas, conceitos, e respostas aos enigmas propostos. Trata-se de um jogo no qual os grandes jogadores nunca perdem de vista o fato de que o mundo é aberto, permitindo-lhes modelar uma infinidade de conceitos com os quais elaboram perguntas nunca antes formuladas, para as quais novas possibilidades de respostas passam a se apresentar.


No transcorrer do jogo, a redenção ocorre no momento do gol, durante a vibração alcançada ao se perceber que toda a construção teórica se encaixa com perfeição.


Uuuuuuhhhhhllllllllll!

Toda conceituação é parcial, assim como uma foto sempre parte de algum ângulo. Impossível uma dada conceituação abranger todos os lados de uma questão, assim como cada fotografia corresponde sempre a um dado ponto de vista.


A ciência é uma atividade pré-capitalista, parece não se coadunar com a ânsia por lucros. Vende-se há décadas, a ideia positivista de que o grosso da ciência já foi feito, de modo que quase toda a física, quase toda a química e, de maneira geral, a maior parte da ciência, já teria sido terminada, equívoco ingênuo e, talvez, mal-intencionado. Parece natural que financiadores de pesquisas prefiram apostar suas verbas em teorias já PROVADAS, razão pela qual qualquer sugestão de dúvida sobre uma teoria pode se tornar aterrorizante aos gulosos captadores de financiamentos. Penso ter sido essa a razão fundamental da estagnação por que tem passado a ciência desde meados do século XX, exatamente quando a quantidade de cientistas profissionais passou a crescer estrondosamente.

Nosso mundo, nossos tempos, são criações nossas. Inspiremo-nos no otimismo emanado pelos grandes momentos do passado para revolucionar, novamente, todas as ideias. O mundo é aberto, nossos pensamentos são construções. Construamos novas visões de mundo, novos mundos. Construamos, agora, o grande momento da história.


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